quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Albert Camus: identidade em crise

“Descemos em Dacar à noite. ..., grandes negros, admiráveis em sua dignidade e elegância, em suas longas túnicas brancas, as negras com roupas antigas, de cores vivas, o cheiro de óleo de amendoim e de excremento, a poeira e o calor. São apenas algumas horas, mas reencontro o cheiro de minha África, cheiro de miséria e de abandono, aroma virgem e ao mesmo tempo forte, cuja sedução eu conheço.” Albert Camus (1997:53)

* ROSÂNGELA ROSA PRAXEDES
Este artigo discute a trajetória do escritor argelino Albert Camus, para entendermos a crise de identidade resultante de sua vida na fronteira entre universos culturais distintos, próprios de seu país de origem, a Argélia, e do país no qual vive na maturidade, a França, e que provoca no autor uma situação de liminaridade e ambiguidade em relação ao processo colonial existente entre os dois países.

Muito já se escreveu sobre a obra de Albert Camus, e todos reconhecem sua importância para a literatura mundial. Há porém uma questão sempre recorrente quando o assunto é a Argélia: Camus, filho de franceses, nasceu e cresceu na África, assimilou a ideologia colonialista francesa e renegou as influências africanas, esquecendo-se das injustiças e violências cometidas contra argelinos em nome da colonização?

Não há dúvida quanto ao fato de que o autor Camus elabora sua obra sob influência do sistema cultural eurocêntrico, mas, o que muitas vezes se esquece é que em seus romances a Argélia resiste insistentemente como uma bela e sedutora paisagem de fundo. Camus divide-se entre dois mundos diversos, e tenta conciliar em sua expressão esta dualidade. O fato de ter passado a infância em um bairro pobre, fronteiriço aos bairros árabes de Argel, marcou profundamente sua obra e seu olhar diante dos povos colonizados.

Viver entre culturas tão diferentes oportunizou-lhe um embate pessoal e conflituoso que se reflete em sua obra, principalmente no que se refere a questão argelina. Em trechos de sua biografia mais recente (TODD, 1998:739), percebemos parte destes conflitos nas palavras do próprio Camus:

“- Sou suspeito para os nacionalistas dos dois lados. Para uns, meu erro é não ser suficientemente patriota. Para os outros, sou patriota demais. Não amo a Argélia à maneira de um militar ou de um colono. Mas será que posso amá-la de outro modo que não como francês? O que muitos árabes não compreendem é que a amo como um francês que ama os árabes e deseja que, na Argélia, eles estejam em sua terra sem que por isso ele mesmo se sinta estrangeiro.”

As indagações e problemas do autor Camus não se restringem à sua própria identidade. Seus romances e artigos de jornais discutem temas que variam das questões políticas da época a problemas filosóficos, mas sempre a partir de uma posição que se pode chamar de liminaridade. Essa posição de sujeito cultural em trânsito lhe possibilitará, sem dúvida, um lugar especial de observação e de assimilação.

I - Identidade e Colonialismo

Albert Camus, Prêmio Nobel de literatura de 1957, jornalista, ensaísta, romancista e dramaturgo nasceu em 1913, em Mondovi, na Argélia e faleceu em 1960 perto de Sens, na França. Viveu entre a pobreza de um meio operário, de uma casa de cômodos, com a rigidez de uma disciplina imposta para garantir as condições de sobrevivência restritas ao essencial. Por outro lado, conviveu também com a exuberância de uma paisagem luminosa, a imensidão do mar vislumbrado na esquina de cada rua e as areias sem fim das praias de Argel. Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus, desde cedo percebeu a miséria de um país colonizado, mas que paradoxalmente proporcionava o conforto na natureza de sol e mar da África.

Camus cresceu sob os cuidados da mãe, de origem espanhola, dos tios e do irmão mais velho Lucien. Lucien Camus, o pai, era de origem francesa, da região da Alsácia e morreu na batalha de Marne, em 1914. Albert Camus, jornalista, passando também pela carreira teatral, como autor e como diretor, passou a morar na França a partir de 1940. Foi militante da Resistência, colaborando com o jornal clandestino Combat, do qual foi redator-chefe após a ocupação nazista.
Sua infância foi vivida em Belcourt, bairro popular de Argel, morava na rua de Lyon, fronteira entre o bairro árabe de Marabout e o bairro francês de Belcourt, tendo ao norte os “indígenas” [1] e ao sul os outros. “Em Belcourt, na margem esquerda, mora o populacho dos franceses da Argélia, alegres, generosos, vaidosos, fanfarrões, que se entusiasmam ou se abatem muito depressa. Estarão esses neofranceses, como os chama M.O.Stott, fermentando sua superioridade sobre os indígenas? Ou um sentimento de inferioridade por serem eles, por sua vez, humilhados, colonizados, pelos funcionários vindos da França, os Francaouis, instalados em remunerações privilegiadas? Comerciantes, carroceiros, aterradores, pedreiros de Belcourt não tiram férias na França.”(TODD 1998:30)

Essa forma de estratificação social foi discutida por Kabengele Munanga, que ao analisar a colonização africana afirma que:

“A sociedade colonial compreende os estrangeiros de origem metropolitana, isto é, do país colonizador, os europeus ou de raça branca não-metropolitanos e os não europeus, geralmente de origem asiática, os coloured ou homens de cor. Os grupos não desempenham o mesmo papel na colônia mas cada um deles tem preeminência sobre os autóctenes. O de origem metropolitana é o mais ativo, pois cabe a ele a função de dominar política, econômica e espiritualmente. Suas atribuições podem ser classificadas da seguinte maneira: a administração dirige a colônia segundo a política colonial; as companhias comerciais e industriais assumem a exploração da produção, afim de organizar os lucros em benefício da metrópole, processo chamado de pilhagem da sociedade dominada; por fim, as missões cristãs, encarregadas da educação dos colonizados, da conversão de suas almas e de seu encaminhamento progressivo ao universo do dominador. Os brancos não metropolitanos e os asiáticos (coloured) dedicam-se a atividades comerciais intermediárias.” (MUNANGA, 1988: 10-11)

Em Belcourt, Camus pôde conviver com os árabes e nomes como Ahmed, Fatma, lhe eram familiares. Brancos pobres e árabes não freqüentavam as casas uns dos outros, mas compartilhava-se o méchoui (carneiro assado no espeto) nas praias e também o ódio pela polícia durante os tumultos. Esses pobres temiam o desemprego e acusavam árabes, judeus, napolitanos, marselheses e outros estrangeiros de roubar-lhes trabalho. A xenofobia convive próxima à solidariedade.

II - A Argélia

A Argélia é um país situado ao norte da África, ocupando uma área total de 2.381.741 km2, a maior parte situada no Deserto do Saara. Sua população se distribui por um relevo formado principalmente pelo deserto e pela Cadeia do Atlas. Nos anos próximos a 1960 a população constitui-se de uma grande maioria de árabes e berberes, correspondendo os europeus (sobretudo franceses) a somente 10% do total. O idioma oficial é o árabe, sendo o francês a principal língua estrangeira falada no país. Dialetos berberes sobrevivem na Kabilia Ocidental, nas montanhas e entre os tuaregues. Os berberes tem preservado sua cultura e costumes de povo montanhês, ao passo que o árabe era mais voltado ao trabalho de pastoreio e era considerado um povo nômade. A parte oriental é de domínio típico do berbere; já a porção ocidental, mais seca, é caracteristicamente árabe. O islamismo é a religião majoritária.
Argel, a capital, têm uma população estimada em 943.142 habitantes em 1966.
Nos anos 60 a Argélia possuía duas universidades, a de Argel (1879) e a de Oran (1967). Em 1949, as escolas primárias para franceses e muçulmanos foram fundidas num só sistema, porém em 1958, apenas 12% das crianças de todas as comunidades estavam matriculadas. O território da atual Argélia chegou a ser no século XVI o centro do império otomano na África do Norte. As populações tribais mantiveram suas culturas ao permanecerem no interior da Argélia, pois a dominação otomana ocorria principalmente nos meios urbanos.

No século XIX a Argélia foi invadida pela França. Através da tática de criar colônias agrícolas militares que seriam bases de provisões junto às áreas de luta, os franceses procuraram minar a resistência nativa, destruindo a agricultura árabe em razias com uma violência que não poupava nem mulheres e crianças. Apesar do bombardeio e pilhagem das aldeias, os berberes, sob a liderança de Kader [2] , não se renderam, e foram expulsos para o sul. Kader foi preso na fronteira com Marrocos em 1847, quando franceses apoiados na antiga administração turca defenderam a participação árabe no governo, iniciando-se uma fase de “respeito” às instituições locais. Em 1845, embora persistisse a insegurança, 40.000 colonos franceses haviam se estabelecido na Argélia. Em 1850 já era de 110.000 o número de colonos, entre franceses, italianos e espanhóis. O berbere, então, perdendo a terra, tornou-se o proletário rural, caindo na miséria.

O governo de Napoleão III foi marcado por uma forte militarização na Argélia e quebrou o sistema de propriedade tribal nativa, fixando árabes e berberes em minifúndios e aumentando a miséria dos agricultores. Em 1870, a região da Kabilia revoltou-se. Reprimida a insurreição, os colonos franceses apossaram-se de 500.000 hectares em detrimento da população árabe. No início do século XX, 1918, um grupo de intelectuais árabes, “os Jovens Argelinos” se organizam baseando-se em idéias nacionalistas, reivindicando melhorias para a população árabe.
Nos anos 30 já se falava em supressão do governo francês e igualdade entre nativos e europeus, mas foi após a II Guerra Mundial que os problemas argelinos agravaram-se, pois, na medida em que a França deu aos colonos o direito de se estabelecerem nas melhores terras, quando mais de 1.500.000 famílias berberes não possuíam terras, provocou êxodo rural e miséria, agravando-se os problemas nas áreas metropolitanas e fazendo com que um décimo da população vivesse, então, da caridade pública. Nesse ambiente surge a chamada “Questão Argelina”, um dos maiores problemas internacionais do pós-guerra.
Em maio de 1945 houve uma grande chacina de civis argelinos por soldados franceses, no massacre de Setif. A repressão francesa é intensa, militares admitem entre 6 e 8 mil mortos, nacionalistas falam de quarenta a cinqüenta mil. Em 1º de novembro de 1954, foi anunciada oficialmente a revolução argelina.

Esses conflitos gerados pelo processo de colonização da África podem sinteticamente ser interpretados, de acordo com Kabengele Munanga, através da noção de situação colonial:

“o conceito de situação colonial aparece como noção dinâmica, expressando uma relação de forças entre vários atores sociais dentro da colônia, sociedade globalizada, dividida em dois campos antagonistas e desiguais, a sociedade colonial e a sociedade colonizada. Na situação colonial africana, a dominação é imposta por uma minoria estrangeira, em nome de uma superioridade étnica e cultural dogmaticamente afirmada, a uma maioria autóctone. A necessidade de manter a dominação por suas vantagens econômicas e psicossociais leva os defensores da situação colonial a recorrerem não apenas à força bruta, mas a outros recursos...” (MUNANGA, 1988:10).

O esforço do colonizador para manter a dominação não apenas através da violência, pode ser representado pelas inúmeras obras literárias vinculadas a ideologia da dominação. Edward Saïd, por exemplo, discutindo a obra de Camus recorda que muitos elementos dessas narrativas (por exemplo, o processo de Meursault, em O Estrangeiro, editado em 1942):
“constituem uma justificação furtiva ou inconsciente da dominação francesa, ou uma tentativa ideológica de embelezá-la.” (SAÏD, 2000)

Em maio de 1945 Camus está em Paris, dirigindo o jornal Combat, e embora mostre mais interesse pela situação da Argélia do que a imprensa francesa em geral, inicia uma série de artigos sobre o massacre com poucas informações, mantendo-se a distância e, procurando não tomar partido a favor dos argelinos revoltosos:
“Diante dos acontecimentos que hoje agitam a África do Norte, convém evitar duas atitudes extremas. Uma constituiria em apresentar como trágica uma situação que é apenas séria. Outra implicaria ignorar as graves dificuldades em que hoje a Argélia se debate” (TOOD, 1998: 392).
Camus declara em seus artigos que os “indígenas” norte-africanos não querem mais ser franceses, e que os árabes querem para a Argélia uma constituição e um parlamento. Para finalizar a série de artigos Camus escreve como última frase:
“É a força infinita da justiça, e só ela, que deve ajudar-nos a reconquistar a Argélia e seus habitantes...” (TOOD, 1998: 394),
expressando, assim, a ambiguidade que o fará alvo das críticas dos seus detratores nacionalistas argelinos.

A ambiguidade em relação ao futuro da Argélia está presente nos textos jornalísticos de Camus e também em sua obra de ficção, mas, recorrendo novamente a Munanga, podemos interpretar que:
“...o esforço constante do colonizador em mostrar, justificar e manter, tanto pela palavra quanto pela conduta, o lugar e o destino do colonizado, seu parceiro no drama colonial, garante, portanto, o seu próprio lugar na empresa.” (MUNANGA, 1988: 21).

III - Como ser francês sendo africano

Segundo Edward Saïd (2000), “Camus é o único autor da Argélia francesa, que pode com alguma razão ser considerado de envergadura mundial. Como Jane Austen, um século antes, é um romancista cujas obras deixaram perceber as realidades imperiais que se ofereçam tão claramente à sua atenção...É uma figura imperialista bastante tardia...”, ou seja, Camus, para Saïd, tem um olhar colonialista sobre a Argélia, a postura de francês ocupando um território africano. Mas vejamos o olhar de um francês da França sobre Camus: “Às vezes, algum Gallimard deixa Camus numa estação de metrô, e então, com rosto magro, pálido, o andar desajeitado, friorento, embrulhado num casaco dado por Michel Gallimard, gola erguida, ele tem o ar infeliz como um homem perdido, um estrangeiro, numa cidade hostil, cinzenta, sinistra.”(depoimento de Robert Gallimard citado por TODD, 1998: 349).

Como o depoimento acima indica, Albert Camus viveu sempre a ambigüidade de ser “pied noir” na França e um descendente de colonizador na Argélia. O escritor peruano Mario Vargas Llosa
considera, por isso, que Camus foi sempre um homem de fronteira:

“Acho que para entender-se o autor de L’Etranger é útil levar-se em conta sua tripla condição de provinciano, homem da fronteira e membro de uma minoria. As três coisas contribuíram parece-me, para sua maneira de sentir, de escrever e de pensar. Foi um provinciano no sentido cabal da palavra, porque nasceu, educou-se e se fez homem muito longe da capital, no que era então uma das extremidades remotas da França: África do Norte, Argélia. Quando Camus instalou-se definitivamente em Paris, tinha cerca de trinta anos, quer dizer, já era, em essência, o mesmo que seria até sua morte. Foi um provinciano para o bem e para o mal, mas sobretudo para o bem, em muitos sentidos.” (LLOSA, 1983: 231).

Deve-se recordar, ainda, que Camus recebeu educação escolar essencialmente francesa e como “...é através da educação que a herança social de um povo é legada às gerações futuras e inscrita na história” (MUNANGA,1988: 23), observamos através de sua biografia que Camus, assim como os alunos árabes que estudavam com ele, ouvia na escola que havia uma hierarquia de civilizações e também que os seus ancestrais eram os gauleses, muito embora isso não queira dizer que os professores acreditavam que seus alunos árabes ou cabilas descendiam de Vercingétorix. Como assinala Todd (1998: 34), os franceses buscavam a assimilação pelo ensino: “confundindo seus interesses com os nossos, os indígenas compartilham conosco a herança do passado: nossos ancestrais tornam-se os deles”.
Concebendo para si uma identidade que os situavam historicamente como os valorosos sucessores dos turcos, árabes, bizantinos, vândalos, romanos, cartagineses, justificavam com isso aquilo que consideravam uma missão civilizatória a ser desempenhada no continente africano. Essas idéias não pareciam nem contestáveis nem racistas aos alunos e aos professores franceses. Embora os professores não necessariamente concordassem com a existência de uma hierarquia entre as raças, valorizavam uma hierarquia das civilizações, desfavorável aos povos não europeus, sendo que a história da Argélia “é apresentada como uma pane de treze séculos entre as colonizações romanas e francesa.” (TODD, 1998: 34).

As concepções colonialistas difundem-se através da escola, da igreja, da família, enfim do meio social, mas é no convívio com seus melhores amigos que o jovem Camus se aproxima de uma visão crítica em relação ao colonialismo. Seus amigos afirmam que detestam “o estado de espírito dos colonos, que se apressam em afirmar que os árabes são preguiçosos, sifilíticos, hipócritas e ladrões. Mas esses colonos precisam dos “indígenas” para fazer os pequenos trabalhos na cidade e os grandes no campo. Revoltados com os salários miseráveis, Robert e Claude levam Albert a tomar consciência dos problemas sociais para além de Argel.” (TODD, 1998: 63)

Os alunos argelinos tinham, assim, uma educação eurocêntrica, que desconsiderava, por exemplo, a geografia e a história cheia de sol e luminosidade dos países africanos. Falava-se de ancestrais loiros de olhos azuis, escamoteando a cultura, a origem africana, como se antes da invasão dos europeus não existisse história nessa região.

Como vimos anteriormente há também uma hierarquia entre os franceses de origem européia instalados na África que são chamados por pieds-noirs para distinguí-los dos franceses da Europa, mas esses pieds-noirs quando na colônia, no caso a Argélia, sentem-se superiores aos povos de origem africana e muitos defendem a cultura assimilacionista, como por exemplo o tio de Camus, Gustave Acault que “despreza a burguesia, mas também diz “os indígenas” sem maldade. Aberto, ambivalente, como a esmagadora maioria dos “pés-pretos”, homem esclarecido, Acault acredita no homem universal. Os muçulmanos realizarão sua essência humana tornando-se franceses” (TODD, 1998: 47).

Neste processo de socialização as influências do ensino formal se combinam com as influências do cotidiano do bairro pobre e multicultural de Belcourt:

“na rua de Lyon, vozes francesas, árabes, espanholas, italianas se misturam. As crianças berram, os cães se perseguem e se “espicaçam”, os bondes tilintam, os burros surram. Na primavera, já ao amanhecer o sol bate nas cores e nos aromas. Cheira a canela, anis, açafrão, água sanitária, alho, azeitona, pimentão caramelado. Músicos passam com tantãs, flautas e castanholas. À tarde as pessoas dormem. Albert detesta as sestas obrigatória ao lado da avó – e aquele odor rançoso de mulher velha. Os bairros nobres, El-Biar, Hydra, o centro de Argel esvaziam-se no verão como uma pia enorme - mas não Belcourt. Lá as crianças em férias invadem as ruas e perturbam os comerciantes.” (TODD, 1998: 30)

Camus faz parte desta sociedade de encontro de culturas, recebe influência majoritariamente européia mas em seu cotidiano está o povo, o som, a luz, o cheiro, o gosto do norte da África, que jamais o deixará, mesmo se visualizados sob o prisma de um olhar eurocêntrico, como atesta uma anotação escrita em seu diário em julho de 1949, aos 36 anos de idade, em viagem rumo à América Latina:

“Descemos em Dacar à noite, grandes negros, admiráveis em sua dignidade e elegância, em suas longas túnicas brancas, as negras com roupas antigas, de cores vivas, o cheiro de óleo de amendoim e de excremento, a poeira e o calor. São apenas algumas horas, mas reencontro o cheiro de minha África, cheiro de miséria e de abandono, aroma virgem e ao mesmo tempo forte, cuja sedução eu conheço.” (CAMUS, 1997: 53)

A dualidade de sentimentos em relação a África significará um embate pessoal e uma sensibilidade especial para com os povos africanos e descendentes. Novamente em seu diário de viagem, agora discorrendo sobre uma danceteria popular no Rio de Janeiro Camus escreve:
“Nada diferencia esse dancing de mil outros pelo mundo afora, a não ser a cor da pele. A esse respeito, observo que tenho que vencer um preconceito inverso. Amo os negros a priori e fico tentado a ver neles qualidades que não têm...” (CAMUS, 1997: 78)

Enfim, parafraseando Edward Saïd afirmando que a obra de grandes escritores ocidentais não foge à mentalidade colonial, talvez seja mais justo afirmar que Camus foi antes de tudo um romancista, um poeta da realidade, e teve muita dificuldade em escolher entre dois mundos diversos, porém inerentes à sua formação identitária. Para Camus a riqueza de estar entre duas culturas, ser argeliano e francês, gerou belíssimas composições literárias, mas também muita culpa e angústia.

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* Graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e Coordenadora do Curso Preparatório Milton Santos, da Associação União e Consciência Negra de Maringá.

Bibliografia

ACHEBE, Chinua. O mundo se despedaça. São Paulo: Ática,1983.
ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989.
BERGER, P. & BERGER, B. “Socialização: como ser um membro da sociedade”, In: FORACCHI, M.M. e MARTINS, J.S. (org.). Sociologia e Sociedade. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1984.
CAMUS, Albert. A morte feliz. Rio de Janeiro: Record, 1971
______. A inteligência e o cadafalso. Rio de janeiro: Record, 1998.
______. A queda. Rio de janeiro: Record, s/d.
______. Diário de viagem. Rio de Janeiro: Record, 1997.
______. O avesso e o direito. Rio de Janeiro: Record, 1999.
______. O exílio e o reino. Rio de Janeiro: Record, s/d.
______. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 1999.
______. O primeiro homem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
CONRAD, Joseph. O coração da treva. São Paulo: Global, 1984.
FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
GONZALES, Horácio. “Albert Camus a libertinagem do sol”. Brasiliense, 1983.
LLOSA, Mario Vargas. Contra vento e maré. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985.
MUNANGA, Kabengele. Negritude usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1988.
______. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
______. “África, trinta anos de processo de independência”. In: Revista USP, nº 18, 1993.
REIS, Eliana Lourenço de Lima. Pós-colonialismo, identidade e mestiçagem cultural: a literatura de Wole Soyinka. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: Salvador, BA: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1999.
SAÏD, Edward. Camus e o inconsciente colonial. In: Le Monde Diplomatique, novembro de 2000.
SOYINKA, Wole. Os intérpretes. Lisboa: Edições 70
TODD, Olivier. Albert Camus: uma vida. Rio de Janeiro: Record, 1998.

[1] A sociedade colonizada abrange os autóctones, habitualmente chamados indígenas ou nativos, na linguagem do administrador colonial. (MUNANGA, 1988:11)

[2] Abd-el-Kader era filho de um marabu e emir de Mascara que levantou as tribos berberes em “Guerra Santa” contra a dominação francesa.

Camus, espelho de Sartre

Ensaio do norte-americano Ronald Aronson sobre o fim da amizade entre os dois intelectuais diz que um foi reflexo do outro, a despeito das diferenças ideológicas
Antonio Gonçalves Filho

Quanto mais se lê Sartre, tanto mais se lê Camus nas entrelinhas. E vice-versa. Pode parecer uma heresia para os leitores de ambos, mas não para um dos maiores especialistas na obra do primeiro, o professor norte-americano Ronald Aronson, de quem a Editora Nova Fronteira lança o oportuno Camus e Sartre - O Fim de Uma Amizade no Pós-Guerra, justamente no mês em que se comemora o cinqüentenário do Nobel de Literatura de Camus - recebido com orgulho por ele em 1957 e desprezado por Sartre, que recusaria o mesmo prêmio em 1964 por considerá-lo “um instrumento da guerra fria”, não sem antes declarar a respeito da consagração sueca do ex-amigo: “Il ne l’a pas volé” (Ele não o roubou).
Essa não foi só uma frase ambígua, que tanto pode traduzir um reconhecimento positivo como uma observação irônica (Aronson fica com a primeira opção). Os dois brigaram feio em 1952. Nunca mais se falaram. Até hoje se achava que a briga tinha apenas motivações políticas, fortes o bastante para colocar os dois em campos ideológicos opostos.
A razão política seria a guerra fria. A exemplo da “guerra ao terrorismo” declarada por Bush - “quem não está do nosso lado está contra nós” -, foi uma guerra do “bem” contra o “mal”. Para Camus, Sartre pertencia ao “eixo do mal”, por defender regimes totalitários como os da União Soviética e a violência política. Para Sartre, Camus não passaria de um anticomunista defensor do regime colonialista francês na Argélia.
Parece simples, mas os motivos da briga, concluiu Aronson, após seis anos de pesquisa, podem ter sido muito mais pueris que um conflito ideológico ou uma discussão de caráter filosófico.Camus era bonitão, fazia sucesso com as mulheres e tinha uma namorada belíssima, a atriz Maria Casarès. Sartre parecia um sapo míope e, além de tudo, reprimia seus sentimentos. Tinha de sustentar um bando de amantes que dividia com a mulher Simone de Beauvoir e ainda amargar - segundo declarou ela à biógrafa Deidre Bair - um amor não correspondido pelo amigo Camus. Sartre podia ser um gênio filosófico, mas Camus era um gênio literário.
Qualquer leitor, afirma Aronson, pode sentir o gosto sensual de areia e sol mesmo nos escritos mais pessimistas de Camus, mas dificilmente vai experimentar algo além da aridez do deserto nos textos em que Sartre fala da alienação do homem moderno. Aronson toma nitidamente o partido de Sartre, apesar de tudo. Como a esquerda radical que fechou com Sartre na época da guerra fria, Aronson considera que ele estava certo ao condenar os métodos de tortura usados pelas tropas francesas de ocupação durante a guerra da Argélia, então uma colônia francesa, e justificar o terrorismo árabe contra o colonizador.
Camus, nascido em Oran, na Argélia, critica a violência de ambos - do colonizador e do colonizado. Os moderados de esquerda fecharam com Camus. Viam os radicais como viciados em violência. Esses não tinham outra palavra para definir os moderados: vendidos.
Com Sartre fazendo tudo para apoiar a luta pela independência argelina e Camus defendendo que a Argélia devia continuar sob o controle francês, razões para desavenças não faltavam. Faltava, sim, segundo Aronson, a última faísca para botar fogo no anticomunismo de Camus, justamente Arthur Koestler, o autor de O Zero e o Infinito, que definiu a União Soviética como “autocracia autoritária com capitalismo de Estado”.
Koestler, que Camus conheceu no ano de sua viagem aos Estados Unidos, em 1946, exerceu enorme influência sobre ele. Sartre também, mas Camus jamais se considerou um existencialista de carteirinha.
O livro de Aronson é uma “biografia” desse relacionamento. E, a exemplo de Simone de Beauvoir, que ficou bastante perturbada com a amizade dos dois, Aronson está convencido de que a briga de Sartre e Camus foi também por amor. Com freqüência, nas grandes histórias de amor, os opostos se atraem e não foi diferente entre Sartre e Camus. Sartre era filho de burgueses. Camus, um pied-noir argelino introduzido na alta roda intelectual francesa graças a Sartre.
Aronson, apesar das diferenças de classe, não acredita que Camus tenha sido um oportunista, um alpinista social que se aproveitou do prestígio do amigo filósofo, “enamorado” o bastante para escrever um artigo na Vogue americana (New Writing in France, 1945), no qual classificou Camus como a nova estrela da literatura francesa. Eles se conheceram em 1943, como membros da Resistência Francesa - Camus como editor do jornal clandestino Combat e Sartre como ativista político.
Koestler viria a ser a pedra no caminho dos dois. Tanto isso é verdade que, em 1946, Camus, que já conhecia Sartre havia três anos, estava empenhado em escrever uma peça (inédita) chamada L’Impromptu des Philosophes, na qual satiriza a figura do amigo Sartre, transformando-o no personagem Monsieur Néant (Senhor Nada). O tal senhor Nada passa a peça inteira carregando um livro grosso que ninguém jamais leu (alusão irônica a O Ser e o Nada, de Sartre).
No entanto, a força de suas idéias é tamanha que ele seduz a família inteira do farmacêutico Vigne com sua doutrina filosófica, até ser recapturado pelo diretor do hospício do qual escapou. Camus jamais publicou o texto.
Aronson sugeriu à filha de Camus, Catherine, que o encenasse, garantido tratar-se de uma comédia e tanto. Ele afirma ser uma das três pessoas do mundo que leram o manuscrito.
A terceira, provavelmente, foi Sartre, que até 1952 leu todas as provas dos livros de Camus, até brigar com ele por causa de uma resenha negativa de O Homem Revoltado (L’Homme Révolté), assinada por Francis Jeanson na revista Les Temps Modernes, criada em 1945 e dirigida por Sartre como uma plataforma para defesa da filosofia existencialista e dos ideais socialistas.
Sartre não gostou do livro de Camus, um ensaio histórico sobre a revolta metafísica do homem, de Epicuro à Revolução Russa. Pediu voluntários para escrever uma resenha e Jeanson, julgado oito anos depois por seu apoio à luta dos nacionalistas argelinos, apresentou um longo texto que não ficou sem resposta do autor do livro.
Camus escreveu uma carta ao jornal - hostil como a crítica - endereçada propositalmente “ao editor”, sem nomear o amigo de Sartre, o que caracteriza sua intenção de acusar o filósofo como o orquestrador de uma campanha de difamação. Sartre escreveu uma resposta ainda mais extensa e agressiva, de 30 páginas, cuidadosamente analisada por Aronson, colocando o “homem revoltado” de Camus abaixo de zero.
Para Sartre, o que existia era o homem revolucionário, nada metafísico, que participava da história e lutava, mesmo sob o risco de cometer erros ou excessos. Camus, que pertenceu ao Partido Comunista de 1935 a 1937, sendo depois expulso, não teria o direito de escrever um livro para influenciar pessoas que lutam se não estava disposto a participar da luta, decretou Sartre. Antes ficar com as mãos sujas de sangue e a consciência limpa do que em cima do muro, como o “contra-revolucionário”.
Camus, defendia o filósofo, para seu escândalo. O amigo que lhe abriu as portas de Paris agora o deixava trancado do lado de fora. Todos os intelectuais ligados a Sartre o ridicularizavam. Magoado e sentindo-se traído, Camus chamava-os de ‘nouveaux-riches’ e ‘parvenus’ do espírito revolucionário, assumindo contraditoriamente o maniqueísmo que denunciava em Sartre.
É exatamente essa síndrome especular que Aronson analisa com bastante competência em Camus e Sartre. Reconciliando os dois amigos no fim de seu livro, ele demonstra que as duas obras estão irremediavelmente ligadas, frutos das longas conversas e do idílio que tiveram antes do divórcio intelectual.
Domingo, 30 dezembro de 2007

sábado, 12 de janeiro de 2008

O absurdo da condição humana

Por Pedro Maciel

O "Exílio e o Reino", é o último livro de ficção publicado por Albert Camus (1913-1960) e o único livro de contos. Não se sabe se o autor continuaria a escrever narrativas curtas. A Queda (1956) era um dos textos que deveria fazer parte da coletânea, mas Camus acabou transformando-o em um romance.

"Não desejo mais ser feliz, e sim apenas estar consciente."
Ao comentar o livro "O Estrangeiro" (1957), Jean-Paul Sartre diz que Camus jamais se valeria da mesma técnica narrativa que empregara naquele romance. Uma das características de Camus é que ele se renova a cada livro. O "Exílio e o Reino" que tem o Brasil por cenário, é a prova da variedade estilística do autor. O exílio fala da solidão do estrangeiro, de sua marginalização e “recusa à representação de um papel que a sociedade lhe atribui”, enquanto o reino é o paraíso da história particular, universal, lugar onde o homem encontra a suposta felicidade.A coletânea (seis contos) é uma síntese da obra camusiana. O narrador explora os temas que sempre o atormentaram, como a solidão e o destino do homem diante do mundo indiferente, e o absurdo da condição humana. Através do “absurdo” o autor decifra o verdadeiro sentido da vida. Mas a vida, segundo Camus, será vivida melhor ainda se não tiver sentido.Certa vez o próprio Camus contestou sua condição de escritor do absurdo ao perguntar: “Que fiz mais, entretanto, senão raciocinar sobre uma idéia que encontrei nas ruas de minha época? Que haja alimentado essa idéia (e que uma parte de mim a alimente sempre), com toda a minha geração, isso é evidente por si. Mantive simplesmente diante dela a distância necessária para dela tratar e decidir de sua lógica. Tudo o que pude escrever depois mostra-o suficientemente. Mas é cômodo explorar uma fórmula de preferência a um matiz. Escolheram a fórmula: eis-me absurdo como antes”.O absurdo em Camus é apenas o princípio do método, ponto de partida para narrar as desventuras do homem do século XX.Ao receber o prêmio Nobel, Camus declarou que “o escritor não pode se colocar a serviço daqueles que fazem a História; ele está a serviço daqueles que a sofrem”. Nascido na Argélia, num mundo de pobreza e luz, o escritor franco-argelino cresceu sob o fogo cruzado da primeira guerra, e desde então, a história não cessou de ser violência ou injustiça.“Fui posto a meio caminho entre a miséria e o sol”, escreve Camus em O avesso e o direito (1937). No livro Volta a Tipasa, o romancista propõe um mundo de justiça iluminado pelo homem consciente de sua existência: “(...) eu redescobria em Tipasa que era preciso (...) amar o dia que escapa à injustiça e tornar ao combate com essa luz conquistada. Reencontrava a antiga beleza, um céu jovem, compreendendo enfim que nos piores anos de nossa loucura a lembrança desse céu jamais me abandonara. Fora ele, afinal, que me impedira de desesperar. Sempre soubera que as ruínas de Tipasa eram mais jovens que nossos canteiros de obras ou nossos escombros. O mundo nelas recomeçava todos os dias dentro de uma luz sempre nova. Ó luz! é o grito de todas as personagens colocadas diante de seu destino no drama antigo. Este último recurso era também o nosso e eu o sabia agora. No meio do inverno, eu aprendia enfim que havia em mim um verão invencível”.Camus recebeu a luz do Mediterrâneo como uma dádiva do céu, expressa numa escrita clássica, pronta para revelar o homem em sua plena consciência, o homem não mais como um mero habitante do mundo, mas um habitante consciente de ser-no-mundo. O ser do homem que o torna o ser sobre-a-terra. O ser que se depara com a sua própria liberdade. Este é o ponto central do pensamento camusiano e de toda a filosofia existencialista.A obra de Camus continua a ser uma exemplar manifestação da consciência crítica deste século. Uma espécie de testamento do mundo contemporâneo. Marca o início do declínio da literatura moderna, que teve precursores, mestres como Proust, Dostoiévski ou Kafka. Logo viria a literatura pós-moderna, caricatura de uma época perversa e “Kitsch”.
Fragmentos de “O Renegado ou um Espírito Confuso”, de Albert Camus
Que confusão, que confusão! É precisoi colocar ordem na minha cabeça. Desde que cortaram minha língua, uma outra língua, sei lá, funciona sem parar no meu crânio, alguma coisa fala, ou alguém, que de repeten se cala para recomeçar tudo outra vez, ah ouço coisas demais que no entanto não digo, que confusão, e, se abro a boca, é como um ruído de pedrinhas remexidas. Ordem, uma ordem, diz a língua, e fala de outra coisa ao mesmo tempo, sim sempre desejei a ordem. Pelo menos, uma coisa é certa, espero o missionário que deve vir me substituir. Estou aqui na trilha, a uma hora de Taghâza, escondido num monte de rochedos, sentado sobre o velho fuzil. O dia nasce sobre o deserto, faz frio demais ainda, logo fará calor demais, esta terra enlouquece e eu, há tantos anos que até já perdi a conta... Não, mais um esforço! O missionário deve chegar esta manhã, ou esta noite. Ouvi dizer que ele viria com um guia, pode ser que tenham apenas um camelo para os dois. Vou esperar, estou esperando, o frio, só o frio me faz tremer. Continue a esperar, escravo imundo!Faz tanto tempo que espero. (...)