quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Albert Camus: identidade em crise

“Descemos em Dacar à noite. ..., grandes negros, admiráveis em sua dignidade e elegância, em suas longas túnicas brancas, as negras com roupas antigas, de cores vivas, o cheiro de óleo de amendoim e de excremento, a poeira e o calor. São apenas algumas horas, mas reencontro o cheiro de minha África, cheiro de miséria e de abandono, aroma virgem e ao mesmo tempo forte, cuja sedução eu conheço.” Albert Camus (1997:53)

* ROSÂNGELA ROSA PRAXEDES
Este artigo discute a trajetória do escritor argelino Albert Camus, para entendermos a crise de identidade resultante de sua vida na fronteira entre universos culturais distintos, próprios de seu país de origem, a Argélia, e do país no qual vive na maturidade, a França, e que provoca no autor uma situação de liminaridade e ambiguidade em relação ao processo colonial existente entre os dois países.

Muito já se escreveu sobre a obra de Albert Camus, e todos reconhecem sua importância para a literatura mundial. Há porém uma questão sempre recorrente quando o assunto é a Argélia: Camus, filho de franceses, nasceu e cresceu na África, assimilou a ideologia colonialista francesa e renegou as influências africanas, esquecendo-se das injustiças e violências cometidas contra argelinos em nome da colonização?

Não há dúvida quanto ao fato de que o autor Camus elabora sua obra sob influência do sistema cultural eurocêntrico, mas, o que muitas vezes se esquece é que em seus romances a Argélia resiste insistentemente como uma bela e sedutora paisagem de fundo. Camus divide-se entre dois mundos diversos, e tenta conciliar em sua expressão esta dualidade. O fato de ter passado a infância em um bairro pobre, fronteiriço aos bairros árabes de Argel, marcou profundamente sua obra e seu olhar diante dos povos colonizados.

Viver entre culturas tão diferentes oportunizou-lhe um embate pessoal e conflituoso que se reflete em sua obra, principalmente no que se refere a questão argelina. Em trechos de sua biografia mais recente (TODD, 1998:739), percebemos parte destes conflitos nas palavras do próprio Camus:

“- Sou suspeito para os nacionalistas dos dois lados. Para uns, meu erro é não ser suficientemente patriota. Para os outros, sou patriota demais. Não amo a Argélia à maneira de um militar ou de um colono. Mas será que posso amá-la de outro modo que não como francês? O que muitos árabes não compreendem é que a amo como um francês que ama os árabes e deseja que, na Argélia, eles estejam em sua terra sem que por isso ele mesmo se sinta estrangeiro.”

As indagações e problemas do autor Camus não se restringem à sua própria identidade. Seus romances e artigos de jornais discutem temas que variam das questões políticas da época a problemas filosóficos, mas sempre a partir de uma posição que se pode chamar de liminaridade. Essa posição de sujeito cultural em trânsito lhe possibilitará, sem dúvida, um lugar especial de observação e de assimilação.

I - Identidade e Colonialismo

Albert Camus, Prêmio Nobel de literatura de 1957, jornalista, ensaísta, romancista e dramaturgo nasceu em 1913, em Mondovi, na Argélia e faleceu em 1960 perto de Sens, na França. Viveu entre a pobreza de um meio operário, de uma casa de cômodos, com a rigidez de uma disciplina imposta para garantir as condições de sobrevivência restritas ao essencial. Por outro lado, conviveu também com a exuberância de uma paisagem luminosa, a imensidão do mar vislumbrado na esquina de cada rua e as areias sem fim das praias de Argel. Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus, desde cedo percebeu a miséria de um país colonizado, mas que paradoxalmente proporcionava o conforto na natureza de sol e mar da África.

Camus cresceu sob os cuidados da mãe, de origem espanhola, dos tios e do irmão mais velho Lucien. Lucien Camus, o pai, era de origem francesa, da região da Alsácia e morreu na batalha de Marne, em 1914. Albert Camus, jornalista, passando também pela carreira teatral, como autor e como diretor, passou a morar na França a partir de 1940. Foi militante da Resistência, colaborando com o jornal clandestino Combat, do qual foi redator-chefe após a ocupação nazista.
Sua infância foi vivida em Belcourt, bairro popular de Argel, morava na rua de Lyon, fronteira entre o bairro árabe de Marabout e o bairro francês de Belcourt, tendo ao norte os “indígenas” [1] e ao sul os outros. “Em Belcourt, na margem esquerda, mora o populacho dos franceses da Argélia, alegres, generosos, vaidosos, fanfarrões, que se entusiasmam ou se abatem muito depressa. Estarão esses neofranceses, como os chama M.O.Stott, fermentando sua superioridade sobre os indígenas? Ou um sentimento de inferioridade por serem eles, por sua vez, humilhados, colonizados, pelos funcionários vindos da França, os Francaouis, instalados em remunerações privilegiadas? Comerciantes, carroceiros, aterradores, pedreiros de Belcourt não tiram férias na França.”(TODD 1998:30)

Essa forma de estratificação social foi discutida por Kabengele Munanga, que ao analisar a colonização africana afirma que:

“A sociedade colonial compreende os estrangeiros de origem metropolitana, isto é, do país colonizador, os europeus ou de raça branca não-metropolitanos e os não europeus, geralmente de origem asiática, os coloured ou homens de cor. Os grupos não desempenham o mesmo papel na colônia mas cada um deles tem preeminência sobre os autóctenes. O de origem metropolitana é o mais ativo, pois cabe a ele a função de dominar política, econômica e espiritualmente. Suas atribuições podem ser classificadas da seguinte maneira: a administração dirige a colônia segundo a política colonial; as companhias comerciais e industriais assumem a exploração da produção, afim de organizar os lucros em benefício da metrópole, processo chamado de pilhagem da sociedade dominada; por fim, as missões cristãs, encarregadas da educação dos colonizados, da conversão de suas almas e de seu encaminhamento progressivo ao universo do dominador. Os brancos não metropolitanos e os asiáticos (coloured) dedicam-se a atividades comerciais intermediárias.” (MUNANGA, 1988: 10-11)

Em Belcourt, Camus pôde conviver com os árabes e nomes como Ahmed, Fatma, lhe eram familiares. Brancos pobres e árabes não freqüentavam as casas uns dos outros, mas compartilhava-se o méchoui (carneiro assado no espeto) nas praias e também o ódio pela polícia durante os tumultos. Esses pobres temiam o desemprego e acusavam árabes, judeus, napolitanos, marselheses e outros estrangeiros de roubar-lhes trabalho. A xenofobia convive próxima à solidariedade.

II - A Argélia

A Argélia é um país situado ao norte da África, ocupando uma área total de 2.381.741 km2, a maior parte situada no Deserto do Saara. Sua população se distribui por um relevo formado principalmente pelo deserto e pela Cadeia do Atlas. Nos anos próximos a 1960 a população constitui-se de uma grande maioria de árabes e berberes, correspondendo os europeus (sobretudo franceses) a somente 10% do total. O idioma oficial é o árabe, sendo o francês a principal língua estrangeira falada no país. Dialetos berberes sobrevivem na Kabilia Ocidental, nas montanhas e entre os tuaregues. Os berberes tem preservado sua cultura e costumes de povo montanhês, ao passo que o árabe era mais voltado ao trabalho de pastoreio e era considerado um povo nômade. A parte oriental é de domínio típico do berbere; já a porção ocidental, mais seca, é caracteristicamente árabe. O islamismo é a religião majoritária.
Argel, a capital, têm uma população estimada em 943.142 habitantes em 1966.
Nos anos 60 a Argélia possuía duas universidades, a de Argel (1879) e a de Oran (1967). Em 1949, as escolas primárias para franceses e muçulmanos foram fundidas num só sistema, porém em 1958, apenas 12% das crianças de todas as comunidades estavam matriculadas. O território da atual Argélia chegou a ser no século XVI o centro do império otomano na África do Norte. As populações tribais mantiveram suas culturas ao permanecerem no interior da Argélia, pois a dominação otomana ocorria principalmente nos meios urbanos.

No século XIX a Argélia foi invadida pela França. Através da tática de criar colônias agrícolas militares que seriam bases de provisões junto às áreas de luta, os franceses procuraram minar a resistência nativa, destruindo a agricultura árabe em razias com uma violência que não poupava nem mulheres e crianças. Apesar do bombardeio e pilhagem das aldeias, os berberes, sob a liderança de Kader [2] , não se renderam, e foram expulsos para o sul. Kader foi preso na fronteira com Marrocos em 1847, quando franceses apoiados na antiga administração turca defenderam a participação árabe no governo, iniciando-se uma fase de “respeito” às instituições locais. Em 1845, embora persistisse a insegurança, 40.000 colonos franceses haviam se estabelecido na Argélia. Em 1850 já era de 110.000 o número de colonos, entre franceses, italianos e espanhóis. O berbere, então, perdendo a terra, tornou-se o proletário rural, caindo na miséria.

O governo de Napoleão III foi marcado por uma forte militarização na Argélia e quebrou o sistema de propriedade tribal nativa, fixando árabes e berberes em minifúndios e aumentando a miséria dos agricultores. Em 1870, a região da Kabilia revoltou-se. Reprimida a insurreição, os colonos franceses apossaram-se de 500.000 hectares em detrimento da população árabe. No início do século XX, 1918, um grupo de intelectuais árabes, “os Jovens Argelinos” se organizam baseando-se em idéias nacionalistas, reivindicando melhorias para a população árabe.
Nos anos 30 já se falava em supressão do governo francês e igualdade entre nativos e europeus, mas foi após a II Guerra Mundial que os problemas argelinos agravaram-se, pois, na medida em que a França deu aos colonos o direito de se estabelecerem nas melhores terras, quando mais de 1.500.000 famílias berberes não possuíam terras, provocou êxodo rural e miséria, agravando-se os problemas nas áreas metropolitanas e fazendo com que um décimo da população vivesse, então, da caridade pública. Nesse ambiente surge a chamada “Questão Argelina”, um dos maiores problemas internacionais do pós-guerra.
Em maio de 1945 houve uma grande chacina de civis argelinos por soldados franceses, no massacre de Setif. A repressão francesa é intensa, militares admitem entre 6 e 8 mil mortos, nacionalistas falam de quarenta a cinqüenta mil. Em 1º de novembro de 1954, foi anunciada oficialmente a revolução argelina.

Esses conflitos gerados pelo processo de colonização da África podem sinteticamente ser interpretados, de acordo com Kabengele Munanga, através da noção de situação colonial:

“o conceito de situação colonial aparece como noção dinâmica, expressando uma relação de forças entre vários atores sociais dentro da colônia, sociedade globalizada, dividida em dois campos antagonistas e desiguais, a sociedade colonial e a sociedade colonizada. Na situação colonial africana, a dominação é imposta por uma minoria estrangeira, em nome de uma superioridade étnica e cultural dogmaticamente afirmada, a uma maioria autóctone. A necessidade de manter a dominação por suas vantagens econômicas e psicossociais leva os defensores da situação colonial a recorrerem não apenas à força bruta, mas a outros recursos...” (MUNANGA, 1988:10).

O esforço do colonizador para manter a dominação não apenas através da violência, pode ser representado pelas inúmeras obras literárias vinculadas a ideologia da dominação. Edward Saïd, por exemplo, discutindo a obra de Camus recorda que muitos elementos dessas narrativas (por exemplo, o processo de Meursault, em O Estrangeiro, editado em 1942):
“constituem uma justificação furtiva ou inconsciente da dominação francesa, ou uma tentativa ideológica de embelezá-la.” (SAÏD, 2000)

Em maio de 1945 Camus está em Paris, dirigindo o jornal Combat, e embora mostre mais interesse pela situação da Argélia do que a imprensa francesa em geral, inicia uma série de artigos sobre o massacre com poucas informações, mantendo-se a distância e, procurando não tomar partido a favor dos argelinos revoltosos:
“Diante dos acontecimentos que hoje agitam a África do Norte, convém evitar duas atitudes extremas. Uma constituiria em apresentar como trágica uma situação que é apenas séria. Outra implicaria ignorar as graves dificuldades em que hoje a Argélia se debate” (TOOD, 1998: 392).
Camus declara em seus artigos que os “indígenas” norte-africanos não querem mais ser franceses, e que os árabes querem para a Argélia uma constituição e um parlamento. Para finalizar a série de artigos Camus escreve como última frase:
“É a força infinita da justiça, e só ela, que deve ajudar-nos a reconquistar a Argélia e seus habitantes...” (TOOD, 1998: 394),
expressando, assim, a ambiguidade que o fará alvo das críticas dos seus detratores nacionalistas argelinos.

A ambiguidade em relação ao futuro da Argélia está presente nos textos jornalísticos de Camus e também em sua obra de ficção, mas, recorrendo novamente a Munanga, podemos interpretar que:
“...o esforço constante do colonizador em mostrar, justificar e manter, tanto pela palavra quanto pela conduta, o lugar e o destino do colonizado, seu parceiro no drama colonial, garante, portanto, o seu próprio lugar na empresa.” (MUNANGA, 1988: 21).

III - Como ser francês sendo africano

Segundo Edward Saïd (2000), “Camus é o único autor da Argélia francesa, que pode com alguma razão ser considerado de envergadura mundial. Como Jane Austen, um século antes, é um romancista cujas obras deixaram perceber as realidades imperiais que se ofereçam tão claramente à sua atenção...É uma figura imperialista bastante tardia...”, ou seja, Camus, para Saïd, tem um olhar colonialista sobre a Argélia, a postura de francês ocupando um território africano. Mas vejamos o olhar de um francês da França sobre Camus: “Às vezes, algum Gallimard deixa Camus numa estação de metrô, e então, com rosto magro, pálido, o andar desajeitado, friorento, embrulhado num casaco dado por Michel Gallimard, gola erguida, ele tem o ar infeliz como um homem perdido, um estrangeiro, numa cidade hostil, cinzenta, sinistra.”(depoimento de Robert Gallimard citado por TODD, 1998: 349).

Como o depoimento acima indica, Albert Camus viveu sempre a ambigüidade de ser “pied noir” na França e um descendente de colonizador na Argélia. O escritor peruano Mario Vargas Llosa
considera, por isso, que Camus foi sempre um homem de fronteira:

“Acho que para entender-se o autor de L’Etranger é útil levar-se em conta sua tripla condição de provinciano, homem da fronteira e membro de uma minoria. As três coisas contribuíram parece-me, para sua maneira de sentir, de escrever e de pensar. Foi um provinciano no sentido cabal da palavra, porque nasceu, educou-se e se fez homem muito longe da capital, no que era então uma das extremidades remotas da França: África do Norte, Argélia. Quando Camus instalou-se definitivamente em Paris, tinha cerca de trinta anos, quer dizer, já era, em essência, o mesmo que seria até sua morte. Foi um provinciano para o bem e para o mal, mas sobretudo para o bem, em muitos sentidos.” (LLOSA, 1983: 231).

Deve-se recordar, ainda, que Camus recebeu educação escolar essencialmente francesa e como “...é através da educação que a herança social de um povo é legada às gerações futuras e inscrita na história” (MUNANGA,1988: 23), observamos através de sua biografia que Camus, assim como os alunos árabes que estudavam com ele, ouvia na escola que havia uma hierarquia de civilizações e também que os seus ancestrais eram os gauleses, muito embora isso não queira dizer que os professores acreditavam que seus alunos árabes ou cabilas descendiam de Vercingétorix. Como assinala Todd (1998: 34), os franceses buscavam a assimilação pelo ensino: “confundindo seus interesses com os nossos, os indígenas compartilham conosco a herança do passado: nossos ancestrais tornam-se os deles”.
Concebendo para si uma identidade que os situavam historicamente como os valorosos sucessores dos turcos, árabes, bizantinos, vândalos, romanos, cartagineses, justificavam com isso aquilo que consideravam uma missão civilizatória a ser desempenhada no continente africano. Essas idéias não pareciam nem contestáveis nem racistas aos alunos e aos professores franceses. Embora os professores não necessariamente concordassem com a existência de uma hierarquia entre as raças, valorizavam uma hierarquia das civilizações, desfavorável aos povos não europeus, sendo que a história da Argélia “é apresentada como uma pane de treze séculos entre as colonizações romanas e francesa.” (TODD, 1998: 34).

As concepções colonialistas difundem-se através da escola, da igreja, da família, enfim do meio social, mas é no convívio com seus melhores amigos que o jovem Camus se aproxima de uma visão crítica em relação ao colonialismo. Seus amigos afirmam que detestam “o estado de espírito dos colonos, que se apressam em afirmar que os árabes são preguiçosos, sifilíticos, hipócritas e ladrões. Mas esses colonos precisam dos “indígenas” para fazer os pequenos trabalhos na cidade e os grandes no campo. Revoltados com os salários miseráveis, Robert e Claude levam Albert a tomar consciência dos problemas sociais para além de Argel.” (TODD, 1998: 63)

Os alunos argelinos tinham, assim, uma educação eurocêntrica, que desconsiderava, por exemplo, a geografia e a história cheia de sol e luminosidade dos países africanos. Falava-se de ancestrais loiros de olhos azuis, escamoteando a cultura, a origem africana, como se antes da invasão dos europeus não existisse história nessa região.

Como vimos anteriormente há também uma hierarquia entre os franceses de origem européia instalados na África que são chamados por pieds-noirs para distinguí-los dos franceses da Europa, mas esses pieds-noirs quando na colônia, no caso a Argélia, sentem-se superiores aos povos de origem africana e muitos defendem a cultura assimilacionista, como por exemplo o tio de Camus, Gustave Acault que “despreza a burguesia, mas também diz “os indígenas” sem maldade. Aberto, ambivalente, como a esmagadora maioria dos “pés-pretos”, homem esclarecido, Acault acredita no homem universal. Os muçulmanos realizarão sua essência humana tornando-se franceses” (TODD, 1998: 47).

Neste processo de socialização as influências do ensino formal se combinam com as influências do cotidiano do bairro pobre e multicultural de Belcourt:

“na rua de Lyon, vozes francesas, árabes, espanholas, italianas se misturam. As crianças berram, os cães se perseguem e se “espicaçam”, os bondes tilintam, os burros surram. Na primavera, já ao amanhecer o sol bate nas cores e nos aromas. Cheira a canela, anis, açafrão, água sanitária, alho, azeitona, pimentão caramelado. Músicos passam com tantãs, flautas e castanholas. À tarde as pessoas dormem. Albert detesta as sestas obrigatória ao lado da avó – e aquele odor rançoso de mulher velha. Os bairros nobres, El-Biar, Hydra, o centro de Argel esvaziam-se no verão como uma pia enorme - mas não Belcourt. Lá as crianças em férias invadem as ruas e perturbam os comerciantes.” (TODD, 1998: 30)

Camus faz parte desta sociedade de encontro de culturas, recebe influência majoritariamente européia mas em seu cotidiano está o povo, o som, a luz, o cheiro, o gosto do norte da África, que jamais o deixará, mesmo se visualizados sob o prisma de um olhar eurocêntrico, como atesta uma anotação escrita em seu diário em julho de 1949, aos 36 anos de idade, em viagem rumo à América Latina:

“Descemos em Dacar à noite, grandes negros, admiráveis em sua dignidade e elegância, em suas longas túnicas brancas, as negras com roupas antigas, de cores vivas, o cheiro de óleo de amendoim e de excremento, a poeira e o calor. São apenas algumas horas, mas reencontro o cheiro de minha África, cheiro de miséria e de abandono, aroma virgem e ao mesmo tempo forte, cuja sedução eu conheço.” (CAMUS, 1997: 53)

A dualidade de sentimentos em relação a África significará um embate pessoal e uma sensibilidade especial para com os povos africanos e descendentes. Novamente em seu diário de viagem, agora discorrendo sobre uma danceteria popular no Rio de Janeiro Camus escreve:
“Nada diferencia esse dancing de mil outros pelo mundo afora, a não ser a cor da pele. A esse respeito, observo que tenho que vencer um preconceito inverso. Amo os negros a priori e fico tentado a ver neles qualidades que não têm...” (CAMUS, 1997: 78)

Enfim, parafraseando Edward Saïd afirmando que a obra de grandes escritores ocidentais não foge à mentalidade colonial, talvez seja mais justo afirmar que Camus foi antes de tudo um romancista, um poeta da realidade, e teve muita dificuldade em escolher entre dois mundos diversos, porém inerentes à sua formação identitária. Para Camus a riqueza de estar entre duas culturas, ser argeliano e francês, gerou belíssimas composições literárias, mas também muita culpa e angústia.

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* Graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e Coordenadora do Curso Preparatório Milton Santos, da Associação União e Consciência Negra de Maringá.

Bibliografia

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FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
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SOYINKA, Wole. Os intérpretes. Lisboa: Edições 70
TODD, Olivier. Albert Camus: uma vida. Rio de Janeiro: Record, 1998.

[1] A sociedade colonizada abrange os autóctones, habitualmente chamados indígenas ou nativos, na linguagem do administrador colonial. (MUNANGA, 1988:11)

[2] Abd-el-Kader era filho de um marabu e emir de Mascara que levantou as tribos berberes em “Guerra Santa” contra a dominação francesa.

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