sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Albert Camus e o Teólogo

No início da década de 1950, Albert Camus visitou a Igreja Americana de Paris para ouvir o famoso organista Marcel Dupré. Naquele dia, acabaria ouvindo também o sermão do norte-americano Howard Mumma, um reverendo metodista que estava em Paris a convite daquela igreja. Intrigado pela filosofia e teologia de Mumma, Camus o convidou para almoçar, iniciando um inusitado relacionamento que seria permeado de conversas sobre teologia e existencialismo, com grande ênfase na questão da teodicéia.

Mumma ainda voltaria a Paris e se encontraria com Albert Camus em diversas ocasiões. Em uma de suas passagens pela cidade, teve a oportunidade de visitar Jean-Paul Sartre e debater com o filósofo alguns conceitos e idéias. Agora, décadas mais tarde, Howard Mumma recupera os diálogos que manteve com esses dois escritores existencialistas, apresentando ao leitor um texto profundo, filosófico e extremamente agradável.

"Ao resgatar de sua memória as conversas que teve com o autor de O homem revoltado, Mumma nos traz nesta obra um retrato da subjetividade de Camus, introduzindo-nos em temas que interessam a todos que acreditam que a abertura a Deus é inerente ao ser humano, ainda que não seja consciente."Do prefácio de Frei Betto

"Um famoso escritor existencialista revela a um teólogo a sua angústia: se Deus existe, por que o mal? Ao relatar essa história por meio de diálogos conduzidos com leveza, mas de maneira incisiva, Howard Mumma leva o leitor a rever suas próprias inquietações existenciais e a recordar o clima intelectual do pós-guerra."
Prof. Dr. Antonio Gouvêa Mendonça
Universidade Presbiteriana Mackenzie, Ciências da Religião

A posição de Camus

Antonio Olinto

Estranha posição, a de Albert Camus, na literatura do século passado. Aos 45 anos conquistou, contra todas as previsões, o Prêmio Nobel de Literatura. Nascido na África do Norte, passaria seus anos de formação longe da Europa, só tendo chegado a Paris aos 23 anos de idade. Se por alguma coisa se distinguia esse racionalista do mito, foi pelo aspecto moral de sua obra. Pode Camus ser classificado como um escritor para quem a ética estava acima da técnica (eu estaria inclinado a usar aqui a palavra estética em vez de técnica, se não estivesse convencido de que a estética pega campo maior do que a simples técnica, já que na estética está contido um princípio de ética). É por isto que Germaine Blée classifica as histórias de Camus ("A peste", "A queda", etc,) de "parábolas". Esta era a sua linguagem, este o seu modo de discutir o que às vezes chamava de absurdo das coisas.

Morreu Camus não muito depois do Nobel, num desastre de automóvel, deixando um livro incompleto, "O primeiro homem", agora republicado no Brasil. No caso, todo homem é primeiro homem, no que não conseguirá repetir o que os homens anteriores fizeram. Toda mulher é uma primeira mulher, toda pessoa é uma primeira pessoa, de tal modo que o sentimento normal de qualquer começo é o espanto.

O lado geográfico da vida de Camus marcou seu caminho. Nascido na Argélia, passou ali a infância e a adolescência. Só conheceu Paris já homem feito. Fez seus estudos na África, onde começou também a escrever e a trabalhar em teatro. Foi jogador de futebol, de nome famoso nos campeonatos locais. Organizou - antes dos vinte anos - grupos teatrais, dirigiu peças. Importante: foi ator. Ao chegar a Paris, já estava formado pela África. As novidades, que insuflou na literatura francesa, vinham, em grande parte, dessa diferença de continentes. Por muito cartesiano que tenha chegado a ser (e mostrou na sua adaptação de "Requiem for a nun", de William Faulkner), retinha Camus um africanismo que o impedia de chegar ao ponto de uma completa europeização.

Foi natural que ele escolhesse o mito de Sísifo para símbolo. Quando escreveu sobre o assunto era muito jovem. E não deixava de ser significativo que fosse buscar Sísifo na cultura grega para chamar a atenção daquela segunda metade do século XX. Sísifo vira-se condenado a sem cessar fazer rolar monte acima uma rocha que, por força de seu peso, também incessantemente voltava ao ponto de partida.

Comentário de Camus "Pensaram com razão que não há castigo maior do que o trabalho fútil e sem esperança". Era como Camus via em geral o homem de hoje: entregue a trabalho "fútil e sem esperança".
Contudo, Camus era africano e isto influiu em sua obra. Há uma contradição no africano ocidental, se por tal entendemos o homem nascido e criado na África, mas de cultura européia. Os primeiros séculos do cristianismo apresentaram dois escritores assim: Tertuliano e Santo Agostinho, ambos nascidos no continente africano. A mistura de africanismo a filosofia racionalista pode produzir uma espécie de pensamento que passamos a chamar de existencialismo. Não é sem razão que Santo Agostinho se apresenta como um dos primeiros existencialistas da era cristã, em contraposição ás vezes ao pensamento ortodoxo que viria a produzir um Santo Tomás de Aquino.

É visível, nos textos de Camus, principalmente os de teatro, uma sacralização da palavra. Tal como em Proust, para Camus a literatura era uma religião em si. Embora não pertencesse ativamente a qualquer religião definida, muitas de suas frases acabavam na igreja. Jornais franceses costumavam divulgar pensamentos de Camus - ditos por ele em reuniões ou extraídas de livros e artigos seus - que serviam de temas para sacerdotes católicos e pastores protestantes em suas prédicas em diversos templos, o que se compreende porque as implicações morais do que tinha Camus a dizer pareciam sob medida para as considerações de um padre.

Sua atividade teatral apresentava também semelhanças com o modo de religiosos tratarem de suas liturgias. Mais de uma vez declarou que via no palco um dos púlpitos modernos. Eram púlpitos que precisavam ser aproveitados sempre que possível para fazer com que idéias e pensamentos capazes de mudar pessoas e comunidades chegassem ao maior número possível de ouvintes. Não muito antes de morrer, encenou "Os possessos", de Dostoiévski, peça que adaptou e dirigiu diretamente e de que participou. Insistia em atrair jovens para as peças que escrevia, para os de textos alheios que adaptava ou dirigia, achando que o palco atinge com mais força uma platéia do que qualquer outro meio de comunicação conhecido. Repetia: o palco é um dos púlpitos do apóstolo moderno. Porque, como todo humanista, que busca a justiça e se liga à esperança, Albert Camus se sentia apóstolo. E como tal será lembrado.


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 31/1/2006

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Albert Camus: identidade em crise

“Descemos em Dacar à noite. ..., grandes negros, admiráveis em sua dignidade e elegância, em suas longas túnicas brancas, as negras com roupas antigas, de cores vivas, o cheiro de óleo de amendoim e de excremento, a poeira e o calor. São apenas algumas horas, mas reencontro o cheiro de minha África, cheiro de miséria e de abandono, aroma virgem e ao mesmo tempo forte, cuja sedução eu conheço.” Albert Camus (1997:53)

* ROSÂNGELA ROSA PRAXEDES
Este artigo discute a trajetória do escritor argelino Albert Camus, para entendermos a crise de identidade resultante de sua vida na fronteira entre universos culturais distintos, próprios de seu país de origem, a Argélia, e do país no qual vive na maturidade, a França, e que provoca no autor uma situação de liminaridade e ambiguidade em relação ao processo colonial existente entre os dois países.

Muito já se escreveu sobre a obra de Albert Camus, e todos reconhecem sua importância para a literatura mundial. Há porém uma questão sempre recorrente quando o assunto é a Argélia: Camus, filho de franceses, nasceu e cresceu na África, assimilou a ideologia colonialista francesa e renegou as influências africanas, esquecendo-se das injustiças e violências cometidas contra argelinos em nome da colonização?

Não há dúvida quanto ao fato de que o autor Camus elabora sua obra sob influência do sistema cultural eurocêntrico, mas, o que muitas vezes se esquece é que em seus romances a Argélia resiste insistentemente como uma bela e sedutora paisagem de fundo. Camus divide-se entre dois mundos diversos, e tenta conciliar em sua expressão esta dualidade. O fato de ter passado a infância em um bairro pobre, fronteiriço aos bairros árabes de Argel, marcou profundamente sua obra e seu olhar diante dos povos colonizados.

Viver entre culturas tão diferentes oportunizou-lhe um embate pessoal e conflituoso que se reflete em sua obra, principalmente no que se refere a questão argelina. Em trechos de sua biografia mais recente (TODD, 1998:739), percebemos parte destes conflitos nas palavras do próprio Camus:

“- Sou suspeito para os nacionalistas dos dois lados. Para uns, meu erro é não ser suficientemente patriota. Para os outros, sou patriota demais. Não amo a Argélia à maneira de um militar ou de um colono. Mas será que posso amá-la de outro modo que não como francês? O que muitos árabes não compreendem é que a amo como um francês que ama os árabes e deseja que, na Argélia, eles estejam em sua terra sem que por isso ele mesmo se sinta estrangeiro.”

As indagações e problemas do autor Camus não se restringem à sua própria identidade. Seus romances e artigos de jornais discutem temas que variam das questões políticas da época a problemas filosóficos, mas sempre a partir de uma posição que se pode chamar de liminaridade. Essa posição de sujeito cultural em trânsito lhe possibilitará, sem dúvida, um lugar especial de observação e de assimilação.

I - Identidade e Colonialismo

Albert Camus, Prêmio Nobel de literatura de 1957, jornalista, ensaísta, romancista e dramaturgo nasceu em 1913, em Mondovi, na Argélia e faleceu em 1960 perto de Sens, na França. Viveu entre a pobreza de um meio operário, de uma casa de cômodos, com a rigidez de uma disciplina imposta para garantir as condições de sobrevivência restritas ao essencial. Por outro lado, conviveu também com a exuberância de uma paisagem luminosa, a imensidão do mar vislumbrado na esquina de cada rua e as areias sem fim das praias de Argel. Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus, desde cedo percebeu a miséria de um país colonizado, mas que paradoxalmente proporcionava o conforto na natureza de sol e mar da África.

Camus cresceu sob os cuidados da mãe, de origem espanhola, dos tios e do irmão mais velho Lucien. Lucien Camus, o pai, era de origem francesa, da região da Alsácia e morreu na batalha de Marne, em 1914. Albert Camus, jornalista, passando também pela carreira teatral, como autor e como diretor, passou a morar na França a partir de 1940. Foi militante da Resistência, colaborando com o jornal clandestino Combat, do qual foi redator-chefe após a ocupação nazista.
Sua infância foi vivida em Belcourt, bairro popular de Argel, morava na rua de Lyon, fronteira entre o bairro árabe de Marabout e o bairro francês de Belcourt, tendo ao norte os “indígenas” [1] e ao sul os outros. “Em Belcourt, na margem esquerda, mora o populacho dos franceses da Argélia, alegres, generosos, vaidosos, fanfarrões, que se entusiasmam ou se abatem muito depressa. Estarão esses neofranceses, como os chama M.O.Stott, fermentando sua superioridade sobre os indígenas? Ou um sentimento de inferioridade por serem eles, por sua vez, humilhados, colonizados, pelos funcionários vindos da França, os Francaouis, instalados em remunerações privilegiadas? Comerciantes, carroceiros, aterradores, pedreiros de Belcourt não tiram férias na França.”(TODD 1998:30)

Essa forma de estratificação social foi discutida por Kabengele Munanga, que ao analisar a colonização africana afirma que:

“A sociedade colonial compreende os estrangeiros de origem metropolitana, isto é, do país colonizador, os europeus ou de raça branca não-metropolitanos e os não europeus, geralmente de origem asiática, os coloured ou homens de cor. Os grupos não desempenham o mesmo papel na colônia mas cada um deles tem preeminência sobre os autóctenes. O de origem metropolitana é o mais ativo, pois cabe a ele a função de dominar política, econômica e espiritualmente. Suas atribuições podem ser classificadas da seguinte maneira: a administração dirige a colônia segundo a política colonial; as companhias comerciais e industriais assumem a exploração da produção, afim de organizar os lucros em benefício da metrópole, processo chamado de pilhagem da sociedade dominada; por fim, as missões cristãs, encarregadas da educação dos colonizados, da conversão de suas almas e de seu encaminhamento progressivo ao universo do dominador. Os brancos não metropolitanos e os asiáticos (coloured) dedicam-se a atividades comerciais intermediárias.” (MUNANGA, 1988: 10-11)

Em Belcourt, Camus pôde conviver com os árabes e nomes como Ahmed, Fatma, lhe eram familiares. Brancos pobres e árabes não freqüentavam as casas uns dos outros, mas compartilhava-se o méchoui (carneiro assado no espeto) nas praias e também o ódio pela polícia durante os tumultos. Esses pobres temiam o desemprego e acusavam árabes, judeus, napolitanos, marselheses e outros estrangeiros de roubar-lhes trabalho. A xenofobia convive próxima à solidariedade.

II - A Argélia

A Argélia é um país situado ao norte da África, ocupando uma área total de 2.381.741 km2, a maior parte situada no Deserto do Saara. Sua população se distribui por um relevo formado principalmente pelo deserto e pela Cadeia do Atlas. Nos anos próximos a 1960 a população constitui-se de uma grande maioria de árabes e berberes, correspondendo os europeus (sobretudo franceses) a somente 10% do total. O idioma oficial é o árabe, sendo o francês a principal língua estrangeira falada no país. Dialetos berberes sobrevivem na Kabilia Ocidental, nas montanhas e entre os tuaregues. Os berberes tem preservado sua cultura e costumes de povo montanhês, ao passo que o árabe era mais voltado ao trabalho de pastoreio e era considerado um povo nômade. A parte oriental é de domínio típico do berbere; já a porção ocidental, mais seca, é caracteristicamente árabe. O islamismo é a religião majoritária.
Argel, a capital, têm uma população estimada em 943.142 habitantes em 1966.
Nos anos 60 a Argélia possuía duas universidades, a de Argel (1879) e a de Oran (1967). Em 1949, as escolas primárias para franceses e muçulmanos foram fundidas num só sistema, porém em 1958, apenas 12% das crianças de todas as comunidades estavam matriculadas. O território da atual Argélia chegou a ser no século XVI o centro do império otomano na África do Norte. As populações tribais mantiveram suas culturas ao permanecerem no interior da Argélia, pois a dominação otomana ocorria principalmente nos meios urbanos.

No século XIX a Argélia foi invadida pela França. Através da tática de criar colônias agrícolas militares que seriam bases de provisões junto às áreas de luta, os franceses procuraram minar a resistência nativa, destruindo a agricultura árabe em razias com uma violência que não poupava nem mulheres e crianças. Apesar do bombardeio e pilhagem das aldeias, os berberes, sob a liderança de Kader [2] , não se renderam, e foram expulsos para o sul. Kader foi preso na fronteira com Marrocos em 1847, quando franceses apoiados na antiga administração turca defenderam a participação árabe no governo, iniciando-se uma fase de “respeito” às instituições locais. Em 1845, embora persistisse a insegurança, 40.000 colonos franceses haviam se estabelecido na Argélia. Em 1850 já era de 110.000 o número de colonos, entre franceses, italianos e espanhóis. O berbere, então, perdendo a terra, tornou-se o proletário rural, caindo na miséria.

O governo de Napoleão III foi marcado por uma forte militarização na Argélia e quebrou o sistema de propriedade tribal nativa, fixando árabes e berberes em minifúndios e aumentando a miséria dos agricultores. Em 1870, a região da Kabilia revoltou-se. Reprimida a insurreição, os colonos franceses apossaram-se de 500.000 hectares em detrimento da população árabe. No início do século XX, 1918, um grupo de intelectuais árabes, “os Jovens Argelinos” se organizam baseando-se em idéias nacionalistas, reivindicando melhorias para a população árabe.
Nos anos 30 já se falava em supressão do governo francês e igualdade entre nativos e europeus, mas foi após a II Guerra Mundial que os problemas argelinos agravaram-se, pois, na medida em que a França deu aos colonos o direito de se estabelecerem nas melhores terras, quando mais de 1.500.000 famílias berberes não possuíam terras, provocou êxodo rural e miséria, agravando-se os problemas nas áreas metropolitanas e fazendo com que um décimo da população vivesse, então, da caridade pública. Nesse ambiente surge a chamada “Questão Argelina”, um dos maiores problemas internacionais do pós-guerra.
Em maio de 1945 houve uma grande chacina de civis argelinos por soldados franceses, no massacre de Setif. A repressão francesa é intensa, militares admitem entre 6 e 8 mil mortos, nacionalistas falam de quarenta a cinqüenta mil. Em 1º de novembro de 1954, foi anunciada oficialmente a revolução argelina.

Esses conflitos gerados pelo processo de colonização da África podem sinteticamente ser interpretados, de acordo com Kabengele Munanga, através da noção de situação colonial:

“o conceito de situação colonial aparece como noção dinâmica, expressando uma relação de forças entre vários atores sociais dentro da colônia, sociedade globalizada, dividida em dois campos antagonistas e desiguais, a sociedade colonial e a sociedade colonizada. Na situação colonial africana, a dominação é imposta por uma minoria estrangeira, em nome de uma superioridade étnica e cultural dogmaticamente afirmada, a uma maioria autóctone. A necessidade de manter a dominação por suas vantagens econômicas e psicossociais leva os defensores da situação colonial a recorrerem não apenas à força bruta, mas a outros recursos...” (MUNANGA, 1988:10).

O esforço do colonizador para manter a dominação não apenas através da violência, pode ser representado pelas inúmeras obras literárias vinculadas a ideologia da dominação. Edward Saïd, por exemplo, discutindo a obra de Camus recorda que muitos elementos dessas narrativas (por exemplo, o processo de Meursault, em O Estrangeiro, editado em 1942):
“constituem uma justificação furtiva ou inconsciente da dominação francesa, ou uma tentativa ideológica de embelezá-la.” (SAÏD, 2000)

Em maio de 1945 Camus está em Paris, dirigindo o jornal Combat, e embora mostre mais interesse pela situação da Argélia do que a imprensa francesa em geral, inicia uma série de artigos sobre o massacre com poucas informações, mantendo-se a distância e, procurando não tomar partido a favor dos argelinos revoltosos:
“Diante dos acontecimentos que hoje agitam a África do Norte, convém evitar duas atitudes extremas. Uma constituiria em apresentar como trágica uma situação que é apenas séria. Outra implicaria ignorar as graves dificuldades em que hoje a Argélia se debate” (TOOD, 1998: 392).
Camus declara em seus artigos que os “indígenas” norte-africanos não querem mais ser franceses, e que os árabes querem para a Argélia uma constituição e um parlamento. Para finalizar a série de artigos Camus escreve como última frase:
“É a força infinita da justiça, e só ela, que deve ajudar-nos a reconquistar a Argélia e seus habitantes...” (TOOD, 1998: 394),
expressando, assim, a ambiguidade que o fará alvo das críticas dos seus detratores nacionalistas argelinos.

A ambiguidade em relação ao futuro da Argélia está presente nos textos jornalísticos de Camus e também em sua obra de ficção, mas, recorrendo novamente a Munanga, podemos interpretar que:
“...o esforço constante do colonizador em mostrar, justificar e manter, tanto pela palavra quanto pela conduta, o lugar e o destino do colonizado, seu parceiro no drama colonial, garante, portanto, o seu próprio lugar na empresa.” (MUNANGA, 1988: 21).

III - Como ser francês sendo africano

Segundo Edward Saïd (2000), “Camus é o único autor da Argélia francesa, que pode com alguma razão ser considerado de envergadura mundial. Como Jane Austen, um século antes, é um romancista cujas obras deixaram perceber as realidades imperiais que se ofereçam tão claramente à sua atenção...É uma figura imperialista bastante tardia...”, ou seja, Camus, para Saïd, tem um olhar colonialista sobre a Argélia, a postura de francês ocupando um território africano. Mas vejamos o olhar de um francês da França sobre Camus: “Às vezes, algum Gallimard deixa Camus numa estação de metrô, e então, com rosto magro, pálido, o andar desajeitado, friorento, embrulhado num casaco dado por Michel Gallimard, gola erguida, ele tem o ar infeliz como um homem perdido, um estrangeiro, numa cidade hostil, cinzenta, sinistra.”(depoimento de Robert Gallimard citado por TODD, 1998: 349).

Como o depoimento acima indica, Albert Camus viveu sempre a ambigüidade de ser “pied noir” na França e um descendente de colonizador na Argélia. O escritor peruano Mario Vargas Llosa
considera, por isso, que Camus foi sempre um homem de fronteira:

“Acho que para entender-se o autor de L’Etranger é útil levar-se em conta sua tripla condição de provinciano, homem da fronteira e membro de uma minoria. As três coisas contribuíram parece-me, para sua maneira de sentir, de escrever e de pensar. Foi um provinciano no sentido cabal da palavra, porque nasceu, educou-se e se fez homem muito longe da capital, no que era então uma das extremidades remotas da França: África do Norte, Argélia. Quando Camus instalou-se definitivamente em Paris, tinha cerca de trinta anos, quer dizer, já era, em essência, o mesmo que seria até sua morte. Foi um provinciano para o bem e para o mal, mas sobretudo para o bem, em muitos sentidos.” (LLOSA, 1983: 231).

Deve-se recordar, ainda, que Camus recebeu educação escolar essencialmente francesa e como “...é através da educação que a herança social de um povo é legada às gerações futuras e inscrita na história” (MUNANGA,1988: 23), observamos através de sua biografia que Camus, assim como os alunos árabes que estudavam com ele, ouvia na escola que havia uma hierarquia de civilizações e também que os seus ancestrais eram os gauleses, muito embora isso não queira dizer que os professores acreditavam que seus alunos árabes ou cabilas descendiam de Vercingétorix. Como assinala Todd (1998: 34), os franceses buscavam a assimilação pelo ensino: “confundindo seus interesses com os nossos, os indígenas compartilham conosco a herança do passado: nossos ancestrais tornam-se os deles”.
Concebendo para si uma identidade que os situavam historicamente como os valorosos sucessores dos turcos, árabes, bizantinos, vândalos, romanos, cartagineses, justificavam com isso aquilo que consideravam uma missão civilizatória a ser desempenhada no continente africano. Essas idéias não pareciam nem contestáveis nem racistas aos alunos e aos professores franceses. Embora os professores não necessariamente concordassem com a existência de uma hierarquia entre as raças, valorizavam uma hierarquia das civilizações, desfavorável aos povos não europeus, sendo que a história da Argélia “é apresentada como uma pane de treze séculos entre as colonizações romanas e francesa.” (TODD, 1998: 34).

As concepções colonialistas difundem-se através da escola, da igreja, da família, enfim do meio social, mas é no convívio com seus melhores amigos que o jovem Camus se aproxima de uma visão crítica em relação ao colonialismo. Seus amigos afirmam que detestam “o estado de espírito dos colonos, que se apressam em afirmar que os árabes são preguiçosos, sifilíticos, hipócritas e ladrões. Mas esses colonos precisam dos “indígenas” para fazer os pequenos trabalhos na cidade e os grandes no campo. Revoltados com os salários miseráveis, Robert e Claude levam Albert a tomar consciência dos problemas sociais para além de Argel.” (TODD, 1998: 63)

Os alunos argelinos tinham, assim, uma educação eurocêntrica, que desconsiderava, por exemplo, a geografia e a história cheia de sol e luminosidade dos países africanos. Falava-se de ancestrais loiros de olhos azuis, escamoteando a cultura, a origem africana, como se antes da invasão dos europeus não existisse história nessa região.

Como vimos anteriormente há também uma hierarquia entre os franceses de origem européia instalados na África que são chamados por pieds-noirs para distinguí-los dos franceses da Europa, mas esses pieds-noirs quando na colônia, no caso a Argélia, sentem-se superiores aos povos de origem africana e muitos defendem a cultura assimilacionista, como por exemplo o tio de Camus, Gustave Acault que “despreza a burguesia, mas também diz “os indígenas” sem maldade. Aberto, ambivalente, como a esmagadora maioria dos “pés-pretos”, homem esclarecido, Acault acredita no homem universal. Os muçulmanos realizarão sua essência humana tornando-se franceses” (TODD, 1998: 47).

Neste processo de socialização as influências do ensino formal se combinam com as influências do cotidiano do bairro pobre e multicultural de Belcourt:

“na rua de Lyon, vozes francesas, árabes, espanholas, italianas se misturam. As crianças berram, os cães se perseguem e se “espicaçam”, os bondes tilintam, os burros surram. Na primavera, já ao amanhecer o sol bate nas cores e nos aromas. Cheira a canela, anis, açafrão, água sanitária, alho, azeitona, pimentão caramelado. Músicos passam com tantãs, flautas e castanholas. À tarde as pessoas dormem. Albert detesta as sestas obrigatória ao lado da avó – e aquele odor rançoso de mulher velha. Os bairros nobres, El-Biar, Hydra, o centro de Argel esvaziam-se no verão como uma pia enorme - mas não Belcourt. Lá as crianças em férias invadem as ruas e perturbam os comerciantes.” (TODD, 1998: 30)

Camus faz parte desta sociedade de encontro de culturas, recebe influência majoritariamente européia mas em seu cotidiano está o povo, o som, a luz, o cheiro, o gosto do norte da África, que jamais o deixará, mesmo se visualizados sob o prisma de um olhar eurocêntrico, como atesta uma anotação escrita em seu diário em julho de 1949, aos 36 anos de idade, em viagem rumo à América Latina:

“Descemos em Dacar à noite, grandes negros, admiráveis em sua dignidade e elegância, em suas longas túnicas brancas, as negras com roupas antigas, de cores vivas, o cheiro de óleo de amendoim e de excremento, a poeira e o calor. São apenas algumas horas, mas reencontro o cheiro de minha África, cheiro de miséria e de abandono, aroma virgem e ao mesmo tempo forte, cuja sedução eu conheço.” (CAMUS, 1997: 53)

A dualidade de sentimentos em relação a África significará um embate pessoal e uma sensibilidade especial para com os povos africanos e descendentes. Novamente em seu diário de viagem, agora discorrendo sobre uma danceteria popular no Rio de Janeiro Camus escreve:
“Nada diferencia esse dancing de mil outros pelo mundo afora, a não ser a cor da pele. A esse respeito, observo que tenho que vencer um preconceito inverso. Amo os negros a priori e fico tentado a ver neles qualidades que não têm...” (CAMUS, 1997: 78)

Enfim, parafraseando Edward Saïd afirmando que a obra de grandes escritores ocidentais não foge à mentalidade colonial, talvez seja mais justo afirmar que Camus foi antes de tudo um romancista, um poeta da realidade, e teve muita dificuldade em escolher entre dois mundos diversos, porém inerentes à sua formação identitária. Para Camus a riqueza de estar entre duas culturas, ser argeliano e francês, gerou belíssimas composições literárias, mas também muita culpa e angústia.

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* Graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e Coordenadora do Curso Preparatório Milton Santos, da Associação União e Consciência Negra de Maringá.

Bibliografia

ACHEBE, Chinua. O mundo se despedaça. São Paulo: Ática,1983.
ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989.
BERGER, P. & BERGER, B. “Socialização: como ser um membro da sociedade”, In: FORACCHI, M.M. e MARTINS, J.S. (org.). Sociologia e Sociedade. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1984.
CAMUS, Albert. A morte feliz. Rio de Janeiro: Record, 1971
______. A inteligência e o cadafalso. Rio de janeiro: Record, 1998.
______. A queda. Rio de janeiro: Record, s/d.
______. Diário de viagem. Rio de Janeiro: Record, 1997.
______. O avesso e o direito. Rio de Janeiro: Record, 1999.
______. O exílio e o reino. Rio de Janeiro: Record, s/d.
______. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 1999.
______. O primeiro homem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
CONRAD, Joseph. O coração da treva. São Paulo: Global, 1984.
FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
GONZALES, Horácio. “Albert Camus a libertinagem do sol”. Brasiliense, 1983.
LLOSA, Mario Vargas. Contra vento e maré. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985.
MUNANGA, Kabengele. Negritude usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1988.
______. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
______. “África, trinta anos de processo de independência”. In: Revista USP, nº 18, 1993.
REIS, Eliana Lourenço de Lima. Pós-colonialismo, identidade e mestiçagem cultural: a literatura de Wole Soyinka. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: Salvador, BA: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1999.
SAÏD, Edward. Camus e o inconsciente colonial. In: Le Monde Diplomatique, novembro de 2000.
SOYINKA, Wole. Os intérpretes. Lisboa: Edições 70
TODD, Olivier. Albert Camus: uma vida. Rio de Janeiro: Record, 1998.

[1] A sociedade colonizada abrange os autóctones, habitualmente chamados indígenas ou nativos, na linguagem do administrador colonial. (MUNANGA, 1988:11)

[2] Abd-el-Kader era filho de um marabu e emir de Mascara que levantou as tribos berberes em “Guerra Santa” contra a dominação francesa.

Camus, espelho de Sartre

Ensaio do norte-americano Ronald Aronson sobre o fim da amizade entre os dois intelectuais diz que um foi reflexo do outro, a despeito das diferenças ideológicas
Antonio Gonçalves Filho

Quanto mais se lê Sartre, tanto mais se lê Camus nas entrelinhas. E vice-versa. Pode parecer uma heresia para os leitores de ambos, mas não para um dos maiores especialistas na obra do primeiro, o professor norte-americano Ronald Aronson, de quem a Editora Nova Fronteira lança o oportuno Camus e Sartre - O Fim de Uma Amizade no Pós-Guerra, justamente no mês em que se comemora o cinqüentenário do Nobel de Literatura de Camus - recebido com orgulho por ele em 1957 e desprezado por Sartre, que recusaria o mesmo prêmio em 1964 por considerá-lo “um instrumento da guerra fria”, não sem antes declarar a respeito da consagração sueca do ex-amigo: “Il ne l’a pas volé” (Ele não o roubou).
Essa não foi só uma frase ambígua, que tanto pode traduzir um reconhecimento positivo como uma observação irônica (Aronson fica com a primeira opção). Os dois brigaram feio em 1952. Nunca mais se falaram. Até hoje se achava que a briga tinha apenas motivações políticas, fortes o bastante para colocar os dois em campos ideológicos opostos.
A razão política seria a guerra fria. A exemplo da “guerra ao terrorismo” declarada por Bush - “quem não está do nosso lado está contra nós” -, foi uma guerra do “bem” contra o “mal”. Para Camus, Sartre pertencia ao “eixo do mal”, por defender regimes totalitários como os da União Soviética e a violência política. Para Sartre, Camus não passaria de um anticomunista defensor do regime colonialista francês na Argélia.
Parece simples, mas os motivos da briga, concluiu Aronson, após seis anos de pesquisa, podem ter sido muito mais pueris que um conflito ideológico ou uma discussão de caráter filosófico.Camus era bonitão, fazia sucesso com as mulheres e tinha uma namorada belíssima, a atriz Maria Casarès. Sartre parecia um sapo míope e, além de tudo, reprimia seus sentimentos. Tinha de sustentar um bando de amantes que dividia com a mulher Simone de Beauvoir e ainda amargar - segundo declarou ela à biógrafa Deidre Bair - um amor não correspondido pelo amigo Camus. Sartre podia ser um gênio filosófico, mas Camus era um gênio literário.
Qualquer leitor, afirma Aronson, pode sentir o gosto sensual de areia e sol mesmo nos escritos mais pessimistas de Camus, mas dificilmente vai experimentar algo além da aridez do deserto nos textos em que Sartre fala da alienação do homem moderno. Aronson toma nitidamente o partido de Sartre, apesar de tudo. Como a esquerda radical que fechou com Sartre na época da guerra fria, Aronson considera que ele estava certo ao condenar os métodos de tortura usados pelas tropas francesas de ocupação durante a guerra da Argélia, então uma colônia francesa, e justificar o terrorismo árabe contra o colonizador.
Camus, nascido em Oran, na Argélia, critica a violência de ambos - do colonizador e do colonizado. Os moderados de esquerda fecharam com Camus. Viam os radicais como viciados em violência. Esses não tinham outra palavra para definir os moderados: vendidos.
Com Sartre fazendo tudo para apoiar a luta pela independência argelina e Camus defendendo que a Argélia devia continuar sob o controle francês, razões para desavenças não faltavam. Faltava, sim, segundo Aronson, a última faísca para botar fogo no anticomunismo de Camus, justamente Arthur Koestler, o autor de O Zero e o Infinito, que definiu a União Soviética como “autocracia autoritária com capitalismo de Estado”.
Koestler, que Camus conheceu no ano de sua viagem aos Estados Unidos, em 1946, exerceu enorme influência sobre ele. Sartre também, mas Camus jamais se considerou um existencialista de carteirinha.
O livro de Aronson é uma “biografia” desse relacionamento. E, a exemplo de Simone de Beauvoir, que ficou bastante perturbada com a amizade dos dois, Aronson está convencido de que a briga de Sartre e Camus foi também por amor. Com freqüência, nas grandes histórias de amor, os opostos se atraem e não foi diferente entre Sartre e Camus. Sartre era filho de burgueses. Camus, um pied-noir argelino introduzido na alta roda intelectual francesa graças a Sartre.
Aronson, apesar das diferenças de classe, não acredita que Camus tenha sido um oportunista, um alpinista social que se aproveitou do prestígio do amigo filósofo, “enamorado” o bastante para escrever um artigo na Vogue americana (New Writing in France, 1945), no qual classificou Camus como a nova estrela da literatura francesa. Eles se conheceram em 1943, como membros da Resistência Francesa - Camus como editor do jornal clandestino Combat e Sartre como ativista político.
Koestler viria a ser a pedra no caminho dos dois. Tanto isso é verdade que, em 1946, Camus, que já conhecia Sartre havia três anos, estava empenhado em escrever uma peça (inédita) chamada L’Impromptu des Philosophes, na qual satiriza a figura do amigo Sartre, transformando-o no personagem Monsieur Néant (Senhor Nada). O tal senhor Nada passa a peça inteira carregando um livro grosso que ninguém jamais leu (alusão irônica a O Ser e o Nada, de Sartre).
No entanto, a força de suas idéias é tamanha que ele seduz a família inteira do farmacêutico Vigne com sua doutrina filosófica, até ser recapturado pelo diretor do hospício do qual escapou. Camus jamais publicou o texto.
Aronson sugeriu à filha de Camus, Catherine, que o encenasse, garantido tratar-se de uma comédia e tanto. Ele afirma ser uma das três pessoas do mundo que leram o manuscrito.
A terceira, provavelmente, foi Sartre, que até 1952 leu todas as provas dos livros de Camus, até brigar com ele por causa de uma resenha negativa de O Homem Revoltado (L’Homme Révolté), assinada por Francis Jeanson na revista Les Temps Modernes, criada em 1945 e dirigida por Sartre como uma plataforma para defesa da filosofia existencialista e dos ideais socialistas.
Sartre não gostou do livro de Camus, um ensaio histórico sobre a revolta metafísica do homem, de Epicuro à Revolução Russa. Pediu voluntários para escrever uma resenha e Jeanson, julgado oito anos depois por seu apoio à luta dos nacionalistas argelinos, apresentou um longo texto que não ficou sem resposta do autor do livro.
Camus escreveu uma carta ao jornal - hostil como a crítica - endereçada propositalmente “ao editor”, sem nomear o amigo de Sartre, o que caracteriza sua intenção de acusar o filósofo como o orquestrador de uma campanha de difamação. Sartre escreveu uma resposta ainda mais extensa e agressiva, de 30 páginas, cuidadosamente analisada por Aronson, colocando o “homem revoltado” de Camus abaixo de zero.
Para Sartre, o que existia era o homem revolucionário, nada metafísico, que participava da história e lutava, mesmo sob o risco de cometer erros ou excessos. Camus, que pertenceu ao Partido Comunista de 1935 a 1937, sendo depois expulso, não teria o direito de escrever um livro para influenciar pessoas que lutam se não estava disposto a participar da luta, decretou Sartre. Antes ficar com as mãos sujas de sangue e a consciência limpa do que em cima do muro, como o “contra-revolucionário”.
Camus, defendia o filósofo, para seu escândalo. O amigo que lhe abriu as portas de Paris agora o deixava trancado do lado de fora. Todos os intelectuais ligados a Sartre o ridicularizavam. Magoado e sentindo-se traído, Camus chamava-os de ‘nouveaux-riches’ e ‘parvenus’ do espírito revolucionário, assumindo contraditoriamente o maniqueísmo que denunciava em Sartre.
É exatamente essa síndrome especular que Aronson analisa com bastante competência em Camus e Sartre. Reconciliando os dois amigos no fim de seu livro, ele demonstra que as duas obras estão irremediavelmente ligadas, frutos das longas conversas e do idílio que tiveram antes do divórcio intelectual.
Domingo, 30 dezembro de 2007

sábado, 12 de janeiro de 2008

O absurdo da condição humana

Por Pedro Maciel

O "Exílio e o Reino", é o último livro de ficção publicado por Albert Camus (1913-1960) e o único livro de contos. Não se sabe se o autor continuaria a escrever narrativas curtas. A Queda (1956) era um dos textos que deveria fazer parte da coletânea, mas Camus acabou transformando-o em um romance.

"Não desejo mais ser feliz, e sim apenas estar consciente."
Ao comentar o livro "O Estrangeiro" (1957), Jean-Paul Sartre diz que Camus jamais se valeria da mesma técnica narrativa que empregara naquele romance. Uma das características de Camus é que ele se renova a cada livro. O "Exílio e o Reino" que tem o Brasil por cenário, é a prova da variedade estilística do autor. O exílio fala da solidão do estrangeiro, de sua marginalização e “recusa à representação de um papel que a sociedade lhe atribui”, enquanto o reino é o paraíso da história particular, universal, lugar onde o homem encontra a suposta felicidade.A coletânea (seis contos) é uma síntese da obra camusiana. O narrador explora os temas que sempre o atormentaram, como a solidão e o destino do homem diante do mundo indiferente, e o absurdo da condição humana. Através do “absurdo” o autor decifra o verdadeiro sentido da vida. Mas a vida, segundo Camus, será vivida melhor ainda se não tiver sentido.Certa vez o próprio Camus contestou sua condição de escritor do absurdo ao perguntar: “Que fiz mais, entretanto, senão raciocinar sobre uma idéia que encontrei nas ruas de minha época? Que haja alimentado essa idéia (e que uma parte de mim a alimente sempre), com toda a minha geração, isso é evidente por si. Mantive simplesmente diante dela a distância necessária para dela tratar e decidir de sua lógica. Tudo o que pude escrever depois mostra-o suficientemente. Mas é cômodo explorar uma fórmula de preferência a um matiz. Escolheram a fórmula: eis-me absurdo como antes”.O absurdo em Camus é apenas o princípio do método, ponto de partida para narrar as desventuras do homem do século XX.Ao receber o prêmio Nobel, Camus declarou que “o escritor não pode se colocar a serviço daqueles que fazem a História; ele está a serviço daqueles que a sofrem”. Nascido na Argélia, num mundo de pobreza e luz, o escritor franco-argelino cresceu sob o fogo cruzado da primeira guerra, e desde então, a história não cessou de ser violência ou injustiça.“Fui posto a meio caminho entre a miséria e o sol”, escreve Camus em O avesso e o direito (1937). No livro Volta a Tipasa, o romancista propõe um mundo de justiça iluminado pelo homem consciente de sua existência: “(...) eu redescobria em Tipasa que era preciso (...) amar o dia que escapa à injustiça e tornar ao combate com essa luz conquistada. Reencontrava a antiga beleza, um céu jovem, compreendendo enfim que nos piores anos de nossa loucura a lembrança desse céu jamais me abandonara. Fora ele, afinal, que me impedira de desesperar. Sempre soubera que as ruínas de Tipasa eram mais jovens que nossos canteiros de obras ou nossos escombros. O mundo nelas recomeçava todos os dias dentro de uma luz sempre nova. Ó luz! é o grito de todas as personagens colocadas diante de seu destino no drama antigo. Este último recurso era também o nosso e eu o sabia agora. No meio do inverno, eu aprendia enfim que havia em mim um verão invencível”.Camus recebeu a luz do Mediterrâneo como uma dádiva do céu, expressa numa escrita clássica, pronta para revelar o homem em sua plena consciência, o homem não mais como um mero habitante do mundo, mas um habitante consciente de ser-no-mundo. O ser do homem que o torna o ser sobre-a-terra. O ser que se depara com a sua própria liberdade. Este é o ponto central do pensamento camusiano e de toda a filosofia existencialista.A obra de Camus continua a ser uma exemplar manifestação da consciência crítica deste século. Uma espécie de testamento do mundo contemporâneo. Marca o início do declínio da literatura moderna, que teve precursores, mestres como Proust, Dostoiévski ou Kafka. Logo viria a literatura pós-moderna, caricatura de uma época perversa e “Kitsch”.
Fragmentos de “O Renegado ou um Espírito Confuso”, de Albert Camus
Que confusão, que confusão! É precisoi colocar ordem na minha cabeça. Desde que cortaram minha língua, uma outra língua, sei lá, funciona sem parar no meu crânio, alguma coisa fala, ou alguém, que de repeten se cala para recomeçar tudo outra vez, ah ouço coisas demais que no entanto não digo, que confusão, e, se abro a boca, é como um ruído de pedrinhas remexidas. Ordem, uma ordem, diz a língua, e fala de outra coisa ao mesmo tempo, sim sempre desejei a ordem. Pelo menos, uma coisa é certa, espero o missionário que deve vir me substituir. Estou aqui na trilha, a uma hora de Taghâza, escondido num monte de rochedos, sentado sobre o velho fuzil. O dia nasce sobre o deserto, faz frio demais ainda, logo fará calor demais, esta terra enlouquece e eu, há tantos anos que até já perdi a conta... Não, mais um esforço! O missionário deve chegar esta manhã, ou esta noite. Ouvi dizer que ele viria com um guia, pode ser que tenham apenas um camelo para os dois. Vou esperar, estou esperando, o frio, só o frio me faz tremer. Continue a esperar, escravo imundo!Faz tanto tempo que espero. (...)

domingo, 16 de dezembro de 2007

A QUESTÃO DO SENTIDO EM CAMUS

Isabel Mª Magalhães R.L. Santos Maia

Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já o não o tenho.
Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada.
Não tenho esperança nem saudades...que posso presumir da minha vida de amanhã,
Senão que será o que não presumo, o que não quero, o que me acontece de fora,
Até através da minha vontade...não quero mais da vida do que senti-la perder-se
Nestas tardes imprevistas
Fernando Pessoa

Nota biográfica

Albert Camus nasceu em Mondovi a 7 de Novembro de 1913. Seu pai de nome Lucien Camus, trabalhava como operário numa exploração vinícula, sendo oriundo de uma família alsaciana, instalada na Argélia em 1871. Sua mãe de nome Catherine Sintès era uma simples empregada doméstica analfabeta e precocemente atacada de surdez, mas cuja figura e presença marcaram de forma inconfundível Camus. De facto, Camus nunca dela se desprenderá, não obstante as diferenças de ordem cultural e, inclusivé , de experiências, recordando então no prefácio à sua primeira obra intitulada O Avesso e o Direito, o quanto deve a toda a sua família: o mérito desta feliz imunidade não me cabe. Devo-a em primeiro lugar aos meus, a quem faltava quase tudo e invejavam pouco mais do que nada. Apenas pelo seu silêncio, a sua reserva, a sua altivez natural e sóbria, esta família que nem sequer sabia ler, deu-me então, as minhas primeiras lições que perduram ainda.1

Em 1914 estala a Primeira Grande Guerra e seu pai é mobilizado vindo a ser ferido na batalha do Marne e acabando por falecer no hospital. Sua mãe regressa a Alger e instala-se num bairro popular- Belcourt. As páginas de O Avesso e o Direito, seu primeiro escrito, recordarão o retrato do seu pai numa moldura dourada: Ele (seu pai) tinha morrido no campo de honra, como se diz. Em lugar de honra, podem ver-se numa moldura dourada, a cruz de guerra e a medalha militar.2

Serão também recordados nestas páginas a luz redonda do candeeiro de petróleo3 que se acende um pouco antes do jantar, no Inverno, e o barulho da rua em determinadas alturas do dia:...Lá fora, a luz, os ruídos; aqui o silêncio da noite.4

Albert Camus cresceu assim, num pequeno apartamento, vivendo com a sua mãe, a avó, um tio doente e um irmão: A criança crescerá, aprenderá, criam-no e pedir-lhe-ão reconhecimento, como se lhe evitassem a dor. A sua mãe terá sempre estes silêncios.5

Garoto de rua, misturado com os outros miúdos da sua vizinhança (judeus, napolitanos, gregos, entre outros), Albert Camus vai ver abrir-se perante si a alegria de uma vida ao ar livre. Talvez tenha sido esta a sua primeira aprendizagem da liberdade e, no fundo, o seu primeiro encontro consigo próprio: Cada artista mantém (...) no fundo de si mesmo, uma fonte única que alimenta durante a sua vida o que ele é e o que diz (...) sei que a minha fonte está(...) nesse mundo de pobreza e de luz em que vivi por muito tempo (...)a pobreza nunca foi para mim uma desgraça- a luz derramava sobre ela as suas riquezas.6

Em 1918 Albert Camus começa a freqüentar a escola normal onde L. Germain (um professor dessa instituição) cedo se interessando por ele, fá-lo trabalhar para além das horas de aula acabando por o apresentar ao concurso de bolsas para colégios e liceus. É a L. Germain que serão dedicados Os Discursos da Suécia.

As lições de amor e de pobreza, as imagens de infância que haviam privado Camus de qualquer ressentimento conheceram o seu avesso quando da sua entrada, na qualidade de bolseiro, para o Liceu Bugeau, em Argel, onde enfrenta os preconceitos de classe da Argélia. A sua sensibilidade precoce fê-lo sentir a discrepância da sua posição; se bem que se sentisse próximo dos seus camaradas franceses, quer pela cultura e nacionalidade, quer pelo nome e apelido, sentia-se sentimentalmente próximo das famílias árabes, em virtude das privações do seu estatuto social. No liceu é considerado um indivíduo cuja presença junto dos demais é, um pouco, a de um intruso, de um estrangeiro. Foi por esta altura que começou a ter os seus primeiros ataques de tuberculose não tendo este infortúnio, jamais, provocado em si o amargor: (...)quando uma doença grave me tirou provisoriamente a força da vida que, em mim, tudo transfigurava, apesar das imperfeições invisíveis e das novas fraquezas que nela encontrava, pude conhecer o medo e o desânimo, jamais o amargor.7

Em 1932 Camus prossegue os seus estudos superiores em Letras, tendo como professores Paul M, Jean Grenier, filósofo ensaísta ao qual se ligará numa fiel e forte amizade, como nos diz em O Avesso e o Direito: meu amigo e mestre J. Grenier8, e a quem dedicará A Morte na Alma, O Avesso e o Direito e O Homem Revoltado. Para além de J.Grenier, outros autores o marcaram, como foram os casos de Montherland, Malreaux, Gide, Barrès, Nietzsche, Dostoiewski.

Hitler acede ao poder em 1933 e Camus torna-se militante do movimento anti-fascista Amesterdam-Pleyel, fundado por Henri Barbuse e Rolland. Em 1934 casa-se (separando-se cerca de dois anos depois) e no fim desse mesmo ano, adere ao Partido Comunista.

Durante o ano de 1935 Camus prossegue os seus estudos em Filosofia na Faculdade de Argel, necessitando para tal de fazer um certo número de serviços, desde trabalhar regularmente no serviço de meteorologia da Faculdade, no Governo Civil ou até vendendo acessórios para automóveis. E é um ano mais tarde que redige a sua tese superior de licenciatura intitulada Metafísica Cristã e Neoplatinismo.

Em 1935/36 toma a seu cargo, junto com alguns amigos, a Casa da Cultura e funda o Teatro do Trabalho. No ano a seguir será a publicação de O Avesso e o Direito e a redacção de A Morte Feliz.

Torna-se em 1936 jornalista do Alger Republican dirigido por Pascal Pia a quem dedicará O Mito de Sísifo. Neste jornal Camus exercerá quase todas as funções, exprimindo-se com verdadeira virulência.

Em Maio de 1939 publica Núpcias e estala a Segunda Grande Guerra (Setembro de 1939). Camus tentou alistar-se, mas não foi aceite por razões de saúde. Termina O Estrangeiro que será publicado em 1942 e instala-se, a título provisório, em Lyon onde casa pela segunda vez com Francine Faure. Entra para a Resistência e para o grupo do Combat sob o pseudónimo de Bauchard.

Até 1947 vamos encontrar a sua assinatura, todas as semanas, nos editoriais do jornal, revelando-se não só um verdadeiro comentarista da diplomacia internacional, como também um cidadão atento às realidades e aspirações do seu país. Durante estes anos assiste-se a uma divulgação, em grande escala, de toda a sua obra. E é durante a guerra que Camus escreve As Cartas a Um Amigo Alemão.

Em 1946 desloca-se aos Estados Unidos da América onde é calorosamente recebido pela juventude universitária americana; é o período de ouro, do prestígio e da fama.

Um ano mais tarde é publicada A Peste cujo sucesso imediato valeu a Camus o Prix des Critiques.

Em 1951 é a vez da publicação de O Homem Revoltado que não é bem recebido pela crítica, desagradando quer à esquerda, quer à direita. Esta obra marca, de facto, o início de uma certa marginalização de Camus e do seu pensamento no meio intelectual parisiense. Camus é alvo de ataques por parte de diversas personalidades ( e entre elas Sartre) que não lhe perdoam o que lhes pareceu ser uma renegação das próprias ideias marxistas quando, no fundo, mais não se tratava do que a conclusão de toda uma reflexão amadurecida, fruto de um longo caminhar interior.

Com o seu livro votado ao ostracismo por parte de tantos que julgava seus amigos, Camus, magoado, refugiar-se-á cada vez mais na elaboração da sua obra e na montagem de adaptações teatrais.

De entre os acontecimentos da década de 50 – revolta operária das tropas soviéticas em Berlim leste; revolta húngara em Outubro de 56 – nenhum o afectou de forma tão dura e profunda como a eclosão da rebelião no Norte de África. A tragédia argelina que ensombrará os últimos anos da sua vida assume, de facto, a dimensão de um drama pessoal incitando Camus a regressar ao jornalismo, afim de fazer ouvir de novo a sua voz. Perante o inegável agravamento da situação e, no sentido de participar mais activamente nos destinos daquela que era a sua terra natal, desloca-se a Argel onde apela às tréguas. Malogrados os seus intentos, regressa descrente a Paris, refugiando-se doravante num certo silêncio. Camus é agora um homem desiludido, invadido pelo pessimismo e dominado pelo sentimento de ser um intruso. É, indiscutivelmente, o dilacerar do seu mundo interior. A guerra da Argélia, país da sua infância e da sua adolescência, é a aprendizagem de um novo tipo de exílio.

Em 1957 obtém o Prémio Nobel da Literatura.

Um ano mais tarde é a publicação de Os Discursos da Suécia e a reedição de O Avesso e o Direito.

Em 1959 Camus começa a redacção de O Primeiro Homem, obra que permanecerá inacabada em virtude do seu abrupto falecimento num acidente de viação em 4 de Janeiro de 1960.

Se Camus na sua juventude aderiu ao Partido Comunista denunciando nas crónicas do Alger Republican a miséria dos seus conterrâneos e, posteriormente, à Resistência, foi sempre tendo como horizonte a felicidade, já que esta não consente que se transponham determinadas barreiras: eu(...) considerava que o homem devia colocar a justiça ao serviço do combate contra a eterna injustiça e devia criar a felicidade para protestar contra o universo do sofrimento (...) a dificuldade da nossa acção consistia em fazer a guerra sem todavia esquecer a felicidade (...) o heroísmo comparado com a felicidade não vale nada.9 É, pois, toda uma vida, toda uma obra, polarizada pela ideia de felicidade, essa tão árdua busca.

1- Introdução: da questão do sentido ao sentido da questão

O século XVII foi o século das matemáticas, o século XVIII o das ciências e o século XIX o da biologia. O nosso século XX é o século do medo...o que mais efectivamente nos chama a atenção neste mundo em que vivemos é, em geral e em primeiro lugar, que a maioria dos homens (...) não tem futuro algum. Nenhuma vida é válida sem projecção no futuro10. O medo e a angústia não são invenções dos filósofos, mas algo constitutivo da condição humana enquanto tal.

De entre os acontecimentos que assolaram a nossa época, surgiu um que, de facto, não tem paralelo na história: o sentimento do absurdo, sentimento este, profundamente analisado em O Mito de Sísifo por Albert Camus, como sendo o verdadeiro mal da nossa época. Viver tem um sentido que é a própria condição de ser esse mesmo sentido, mas existe, todavia, um inalienável sentimento que abala: trata-se da consciência e da necessidade de uma certa familiaridade que exige que o mundo seja explicado. A ciência, essa, de nada aqui pode servir porque os seus aperfeiçoamentos práticos ameaçam de destruição a Terra inteira11 e só o olhar e o sentimento de acordo profundo com o mundo podem trazer qualquer certeza. Este mundo não pode ser reduzido nem a um princípio racional, nem a um absoluto que lhe confira unidade. Num mundo conduzido por forças cegas e surdas, incapazes de ouvir os gritos de alerta...as súplicas12, num universo assim privado de sentido, o homem sente-se um estrangeiro. Esta fractura entre o mundo e o seu espírito deve ser mantida, já que é ela a sua verdadeira condição humana. Abolir tal fractura mais não seria do que adormecê-la voluntariamente na ilusão de uma significação para além da condição limitada do homem. Num universo onde reinam a contradição, a antinomia, a angústia, o impoder entre o sim e o não, o homem não deve tentar concluir, uma vez que isso afirmar-se-ia como uma traição à vida. A consciência da gratuitidade é feita da própria recusa de esperar e de uma vida sem consolação. O sentimento de se ser estrangeiro à sua própria vida torna equivalentes todas as experiências. Tal sentimento de divórcio entre o homem e a vida é o sentimento do absurdo. Viver este absurdo é permanecer clarividente para que seja possível aos homens "purgarem-se" de todo um conjunto de emoções, em ordem a uma autenticidade, ou seja, à lucidez e à disponibilidade.

Para um sentimento como o do absurdo, a única verdade de que se dispõe é, justamente, o absurdo, não restando outra solução que não seja a de o manter na mais plena lucidez; ele é o limite dentro do qual se tem de organizar a vida, a única coerência de que se dispõe. Renunciar ao absurdo é abster-se de ver claro e recusar a única evidência que se dá ao nível do humano. Qualquer renúncia ao absurdo é um suicídio que pode ser físico - a morte - ou espiritual - apelar a princípios transcendentes ao absurdo e à própria vida. Neste sentido, a única solução possível é a obstinação desesperada de manter o absurdo, a lucidez, por mais amarga e irremediável que esta possa ser. Até aqui tratava-se de saber se a vida devia ter um sentido para ser vivida. A partir daqui, pelo contrário, impõe-se-nos que ela será vivida até melhor por não ter sentido (...) viver é fazer viver o absurdo13, diz-nos Camus em O Mito de Sísifo.

Sísifo é um exemplo desta lucidez obstinada, pois é condenado a um esforço inútil: empurrar diariamente uma rocha fazendo-a subir ao cume de uma montanha, para assistir à sua inevitável queda. Se bem que seja uma tarefa absurda, sem sentido, é a única que pode realizar honestamente o homem absurdo: Deixo Sísifo no sopé da montanha (...) é preciso imaginar Sísifo feliz.14

Todavia, esta concepção do absurdo cedo se afirma insustentável. Ninguém consegue viver eternamente em tal estado de separação e, assim, o absurdo conduz à revolta na procura da unidade, da felicidade, do sentido. A revolta afirma-se como um convite a que nos façamos cúmplices da felicidade comum, na condição de que esta seja uma cumplicidade transparente e não ensombrada pela mentira e pelo engano. A questão do sentido é a questão do homem e o homem é o único sentido da questão, como nos deixa antever Camus em Cartas a Um Amigo Alemão quando diz: Continuo a pensar que este mundo não tem qualquer sentido superior. Mas sei que nele, se alguma coisa tem sentido é o homem (...) este mundo possui pelo menos a verdade do homem (...) é ele que fará com que seja salva, se quisermos, a ideia que fazemos da vida.15

2- As núpcias com o mundo

O problema fundamental do homem camusiano é o problema da união e da separação. Perante o mundo ele sente-se simultaneamente familiar e estrangeiro, solitário e solidário, como nos revela Camus em O Mito de Sísifo: se eu fosse árvore entre as árvores, gato entre os animais, esta vida teria um sentido, ou melhor, este problema é que não o teria, porque eu faria parte deste mundo. Seria este mundo ao qual me oponho com toda a minha consciência e exigência de familiaridade.16

Há toda uma alternância de sentimentos de amor e de ódio, de união e de separação em relação a esse mesmo mundo. O mundo de Camus é um mundo de felicidade e de infelicidade, de divisão e de unificação. Este tipo de dualismos está patente, quer nos títulos das suas obras, quer nas próprias obras. Será isto sinónimo de um certo prazer da alternância, ou a obsessão de um problema para o qual não existe solução? Se a solidão existe, o que não ignoro, ter-se-ia todo o direito, na ocasião própria, de sonhar com ela como com um paraíso. Sonho com ela de vez em quando, como toda a gente17, diz-nos Camus no prefácio a O Avesso e o Direito.

O carácter iminentemente humano do problema da união e da separação, a própria nostalgia e o apetite de absoluto que ilustram bem o movimento essencial do drama humano, são igualmente acentuados em O Mito de Sísifo.

A dimensão fundamentalmente humana da obra de Camus reside, precisamente, no drama que é por uma lado, a existência de uma separação e, por outro, a nostalgia de uma união. O homem só reflecte porque, de facto, sofre. É quando toma consciência daquilo que o constitui, daquilo que ele é, que se encontra face a uma contradição, uma vez que só se sente ser, enquanto que é um indivíduo distinto, rodeado de criaturas que pretendem igualmente ser.

O problema da humanidade é o do absurdo, como refere Camus logo no início de O Mito de Sísifo: Só há um problema filosófico verdadeiramente sério é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias vem depois. São apenas jogos; primeiro é necessário responder18 e ainda um mundo que se pode explicar, mesmo com más razões é um mundo familiar. Mas, pelo contrário, num universo subitamente privado de ilusões e de certezas, o homem sente-se um estrangeiro.19

O homem inicia a sua vida em pleno acordo, numa plenitude, espécie de paraíso. Este tipo de acordo transparece, justamente, no facto de o homem consentir num casamento com a terra. Ao longo das páginas de As Núpcias, este casamento surge-nos de forma indubitável. O tema desta obra é a própria paisagem mediterrânea, essa mistura de beleza e indiferença. Núpcias é o testemunho de uma felicidade encontrada, descoberta, conquistada em virtude de uma saciedade física, na comunhão e na euforia! O Mediterrâneo é simultaneamente uma lição de desprendimento e uma enorme paixão: Caminhamos ao encontro do amor e do desejo. Não procuramos lições nem a amarga filosofia (...) fora do sol, os beijos, os perfumes selvagens parecem-nos fúteis (...) eu sou com aqueles que eu amo e leio sobre os seus traços o claro sorriso que toma o rosto do amor20 e ainda os deuses brilhantes do dia voltam à sua morte quotidiana. Mas outros deuses virão (...) não sou eu que conto, nem o mundo, mas somente o acordo e o silêncio que de ele a mim fazem nascer o amor.21

O homem vive aqui numa espécie de estado puramente animal, como que desprovido de razão e de espírito, não tendo ainda comido o fruto do conhecimento. O que ele conhece é o corpo e a terra de que faz parte integral: Sentir os seus laços com uma terra, o seu amor por alguns homens, saber que é sempre um laço onde o coração encontrará o seu acordo, são certezas para a vida de um homem.22

Esta união na qual o homem inicia a sua vida, não é somente a união com a terra, com o mundo físico, mas igualmente a união com o mundo social e metafísico, ou seja, com os homens e com os deuses, já que todos surgem, desde logo, numa mesma terra. Mesmo a morte surge como um silêncio feliz. No prefácio a O Avesso e o Direito, Camus exprime toda esta nostalgia do paraíso perdido: Na ilusão da vida, eis o homem que encontra as suas verdades e que as perde, sobre a terra da morte, para regressar através das guerras, dos lamentos, da loucura da justiça e do amor, da dor, enfim, a essa pátria tranqüila em que a própria morte é um silêncio feliz (...) na própria hora do exílio, porque pelo menos sei, de ciência certa, que a obra de um homem outra coisa não é senão este longo caminhar para a tornar a achar pelos desvios da arte, as duas ou três imagens simples e grandes para as quais o coração pela primeira vez se abriu.23

3- O Exílio

Este estado de fusão, de união plena e comunhão é efémero, pois cedo é o despertar da consciência e com ela o conhecimento e a lucidez. A felicidade do homem camusiano constituída na ignorância e na inocência, dissipa-se em virtude da descoberta da outra face que é a inquietude. O homem camusiano é condenado ele também a evoluir como homem - espécie. Ele vai agora comer o fruto do conhecimento do bem e do mal, dotado de razão e expulso do seu paraíso terrestre24. Expulso do paraíso o homem é condenado à liberdade e à procura, no acordo com a terra, da unidade fundamental, a partir da qual será possível a sua felicidade. O homem camusiano é o homem do segundo acordar e da segunda queda, e é já deste reacordar que Camus nos fala em O Avesso e o Direito: E eis que a cortina dos hábitos, a trama confortável dos gestos e das palavras sem que o coração se acalma, se levanta lentamente e descobre enfim, a face lívida da inquietação. O homem está frente a frente consigo mesmo: desafio-o a ser feliz (...) estabelece-se entre ele e as coisas um grande desacordo.25

O absurdo é quotidiano, só que é dele preciso tomar consciência! O hábito de viver é anterior ao hábito de pensar - Primum vivere, deinde philosophari - se bem que o hábito de viver tenha deformado o hábito de pensar. Assim, neste sentido, a descoberta do absurdo é já uma vitória! Importa, pois, perseguir essa lucidez.

Em O Mito de Sísifo, o reacordar e a recaída são ainda melhor descritos: Acontece que os cenários desabam. Os gestos de levantar, o carro eléctrico, quatro horas de escritório ou de fábrica, refeição, sono e segunda-feira, terça, quarta, quinta, sexta e sábado no mesmo ritmo, este estado segue-se com facilidade a maior parte do tempo. Só um dia o "porquê" se levanta e tudo recomeça nessa lassidão tingida de espanto (...) no extremo desse despertar vem, com o tempo, a conseqüência- o suicídio ou o restabelecimento (...) porque tudo começa pela consciência e nada vale a não ser por ela.26

O que de facto define o homem no mundo é a sua condição de exílio que é caracterizada pela absurdidade, pelo pessimismo. O sentimento de absurdidade é, de facto, o primeiro sentimento que o homem camusiano descobre perante este estado de separação. A condição humana é fundamentalmente absurda: há um divórcio não só entre o homem e o mundo, mas também entre os próprios homens...o sentimento do absurdo não brota de um simples exame de um facto ou de uma impressão, mas jorra da comparação entre um estado de facto e uma certa realidade, uma acção e o mundo que a ultrapassa. O absurdo é essencialmente um divórcio.27

O absurdo quer dizer ruptura de unidade ou separação entre o apelo do homem à unidade e a visão que ele tem das paredes que o cercam. Se o mundo tem o seu direito, possui também o seu avesso, sendo ao mesmo tempo um exílio e um reino. A condição humana é uma condição cruel, limitada e sem amanhã. O homem encontra-se numa terra dolorosa, no universo da dor, da infelicidade e do divórcio.

Como já tive oportunidade de referir, este divórcio não é só entre o homem e o mundo, uma vez que o homem não é só um exilado no universo, mas também um exilado na sociedade e um estranho para si próprio. Há todo um conjunto de dualidades pertencentes ao homem geral, mas que são aqui revistas pelo homem camusiano: o tempo e o espaço, o eu e o não-eu, seja ele metafísico, psicológico ou social. O tempo pode alienar-nos e fazer-nos descobrir (...) o estranho que em certos segundos vem ao nosso encontro num espelho, o irmão familiar, e apesar disso, inquietante que encontramos nas nossas próprias fotografias28, mas o espaço também nos pode tornar estranhos a nós mesmos, como é disto exemplo uma viagem e ainda do mesmo modo e em relação a todos os dias de uma vida sem lustro, o tempo carrega connosco...vivemos sobre o futuro: 'amanhã', 'mais tarde29', mas o homem pertence ao tempo, e a esse horror que o apodera, onde reconhece o seu pior inimigo.

A oposição eu e não-eu pode manifestar-se sob a forma de um exílio metafísico. O homem é essencialmente um ser-no-mundo e a sua situação de direito é poder manter as relações proporcionadas com o mundo em virtude das exigências da natureza humana, num universo que lhe seria natural, as relações de parentesco deveriam funcionar. O homem faria, desta forma, parte do universo onde encontraria a felicidade. Mas o mundo é anti-natural, e o homem é uma criatura cega e errante no ténebre de uma condição cruel e limitada. Há um "mal-entendido" por todo o lado - o mundo é espesso. Entrever até que ponto uma pedra nos é estranha, nos é irredutível, com que intensidade a natureza, uma paisagem nos pode negar (...) a hostilidade primitiva, através de milhões de anos, regressa até nós (...) o mundo foge-nos porque se transforma nele próprio...uma só coisa: esta espessura e esta estranheza do mundo é o absurdo.30

Este aprisionamento do espírito é sentido pelo homem absurdo como um desespero muito particular: A primeira diligência do espírito é a de distinguir o que é verdadeiro do que é falso(...) e assim sucessivamente até ao infinito (...) este círculo vicioso...estranho a mim próprio e a esse mundo, unicamente armado de um pensamento que se nega a si próprio logo que se afirma, que condição é essa...31

Para além das antinomias tempo/espaço, eu/não-eu metafísico, o homem camusiano descobre sobretudo a tradicional antinomia existente entre ele mesmo e os outros. O homem é estranho para si próprio; ele é corpo e alma, mas estes são mutuamente estranhos, como mostra Camus ao referir o divórcio ridículo que separa as nossas intemperanças da alma e as alegrias mortais do corpo32. O absurdo reside no simples facto da alma desse corpo o ultrapassar desmesuradamente. A nossa identidade pessoal escapa-se-nos; em nós habita algo de "inumano" que estamos impossibilitados de definir na totalidade: É provavelmente verdade que um homem nos fica sempre desconhecido e que nele sempre subsiste qualquer coisa de irredutível que nos escapa.33

Este algo de irredutível, este fosso, torna-se consideravelmente maior quando se trata do próprio indivíduo porque se tento alcançar este "eu" de que me apodero, se tento defini-lo e resumi-lo, ele não é mais do que água a escorrer-me por entre os dedos. Posso desenhar um a um todos os rostos que ele sabe tomar e também todos aqueles que lhes foram dados, a educação, a origem, o ardor ou os silêncios, a grandeza ou a baixeza. Mas não podemos adicionar rostos. Mesmo este coração que é o meu ficar-me-á para sempre incompreensível. O fosso entre a certeza que tenho da minha existência e o conteúdo que tento dar a essa certeza, nunca estará cheio. Serei para sempre estranho a mim mesmo.34

Pensamos que nos conhecemos e descobrimos um dia como sempre fomos estranhos á nossa própria vida.

O homem camusiano é igualmente obcecado pelo não-eu social, ou seja, pelo outro. Para além de exilado metafísico e exilado psicológico, o homem é também um exilado na sociedade. Os outros escapam-nos e nós escapamo-lhes se cortarmos os laços afectivos que nos familiarizam com certas pessoas, tornando-se estas estrangeiros: (...)há dias em que encontramos como uma estranha aquela que amamos e Camus diz-nos ainda que os homens também segregam algo de inumano. Em certas horas de lucidez, o aspecto mecânico dos seus gestos, e a sua pantomina privada de sentido torna estúpido tudo o que o rodeia. Um homem fala pelo telefone por detrás de uma divisória de vidro; não o ouvimos mas vemos a sua mímica sem alcance, perguntamos a nós próprios porque vive ele. Esse mal estar ante a inumanidade do próprio homem, essa queda incalculável ante a imagem daquilo que somos, essa "náusea" como lhe chama um autor dos nossos dias é também o absurdo.35

Não obstante a obsessão pelo não-eu social, o que não é possível é negar a vida do outro. Nada saberemos enquanto não soubermos se temos direito de matar o outro que está diante de nós, ou consentirmos na sua morte.

É essencialmente em A Queda, Calígula e O Estrangeiro, que o problema do outro se coloca de uma forma mais grave e angustiante. Calígula lastima-se em virtude da presença opressiva dos outros. Mersault, o herói de O Estrangeiro, seria feliz mesmo sem Maria Cardona se não houvesse sempre a presença do outro. Mersault leva uma vida sossegada, pacífica, simples, até que um dia na praia, em virtude do outro que lhe barra o caminho, se vê obrigado a matá-lo. E é por ter morto o outro que Mersault será preso. Em A Queda, Clamence mantém uma relação conflituosa com o outro, relação de luta constante, onde é alternadamente vencedor e vencido. Esta obsessão do outro está bem expressa num passo do seu discurso, onde chega a interpretar os acontecimentos históricos e, inclusivé, o Evangelho em função do outro, ao ponto de ver este drama na agonia e na morte de Cristo: Olhe, sabe porque é que o crucificaram, o outro, aquele em que neste momento talvez o Sr. Pense? Bom, havia carradas de razões para matar um homem (...) mas ao lado das razões que muito bem nos explicaram durante 2000 anos, havia uma grande para esta horrível agonia, e não sei porque a esconderam tão cuidadosamente. A verdadeira razão é que ele próprio sabia que não estava completamente inocente (...) ele devia ter ouvido falar de um certo massacre dos inocentes. As crianças da Judeia massacradas enquanto os seus pais o levavam para lugar seguro (...) e essa tristeza que se adivinha em todos os actos, não será a melancolia incurável daquele que ouvia através das noites a voz de Raquel gemendo sobre os seus filhos e recusando toda a consolação?36

Clamence começou também por viver num acordo; era feliz e vivia num acordo consigo mesmo até ao dia em que, subindo o Ponto des Arts, julgou ouvir atrás de si um riso que lhe era dirigido e então a partir do dia em que fiquei alerta, veio-me a lucidez, recebi todos os ferimentos ao mesmo tempo e perdi de uma só vez as minhas forças. O universo inteiro pôs-se a rir à minha volta. Clamence sentir-se-á a partir daqui dividido, cindido em dois e condenado a ouvir o outro. É sobre este conflito interior entre o eu e o outro que se funda todo o discurso de Clamence. A existência do outro para a qual Clamence desperta agora desta forma abrupta, está na origem da sua queda: queda na auto-acusação, no próprio sentimento de culpabilidade, desconforto interior e, inclusivé, na escala social, uma vez que Clamence se viu privado de uma famosa carreira de advocacia, enfim, de toda uma bela vida.

De entre todas as formas de exílio que temos vindo a ver, o exílio metafísico é o mais dilacerante e o mais poderoso. O não-eu metafísico é uma força exterior, estranha, que se impões ao indivíduo governando a sua vida de uma forma inexorável sem que jamais lhe seja possível compreendê-la e, muito menos ainda, superá-la. Contra esta força o homem não pode nada; qualquer contacto ou relação são interditados desde logo. Neste sentido, o homem camusiano insulta esta força misteriosa, dedicando-lhe um ódio feroz. As

Suas blasfémias surgem sob a forma de odiosas homenagens, das quais Calígula é exemplo: Para um homem que ama o poder, a rivalidade dos deuses tem qualquer coisa de incómodo. Suprimi-a. Provei a esses deuses ilusórios que um homem, se tiver vontade, pode exercer sem aprendizagem o ridículo ofício deles.37

O não-eu metafísico apresenta-se para Calígula na forma dos deuses e do próprio destino como fatalidade, como lei desprezível dos deuses, sendo estes os responsáveis por tal abominável e revoltante destino. Calígula dá também o nome de "morte" a este destino enquanto ele se afigura como lei inexorável. A morte foi uma descoberta da lucidez que concluiu pela absurdidade geral do mundo. Para um homem cujo desejo natural é viver, a morte surge como uma contradição: esta ideia de que sou, a minha maneira de agir como se tudo tivesse um sentido...tudo isto se encontra desmentido de maneira vertiginosa pelo absurdo de uma morte possível.38

A vida é, indubitavelmente, o único valor e quanto mais ela é exaltante, mais absurda é a ideia de a perder. Em Don Juan tal amor só encontra fim na derradeira contradição que é a morte39. A morte é absurda uma vez que não distingue nem bem nem mal, é a fatalidade por excelência, uma morte sem esperança. O absurdo elucida-me neste ponto: não há amanhã.40 A morte é para o homem camusiano a forma do não-eu metafísico mais concreta, mais próxima e assim ele concentra todo o seu ódio do destino no ódio da morte e só vencendo-a poderá triunfar sobre os deuses e o destino. É pois, contra a morte que o homem camusiano deve conduzir a campanha da felicidade e ganhá-la! Neste sentido a ideia da morte é paralela à ideia de felicidade: Na ilusão da vida eis o homem que encontra as suas verdades e as perde sobre a terra da morte para regressar através das guerras, dos lamentos, da loucura, da justiça e do amor, da dor, enfim, a essa pátria tranquila em que a própria morte é um silêncio feliz.41

A morte obcecou Camus desde a sua juventude, sendo precisamente contra ela que se ergue toda a sua obra e ao longo desta, é ainda a ela, à morte, que Camus deve os seus fulgurantes momentos de inspiração. O Avesso e o Direito, sua primeira obra, é composta por ensaios que têm unicamente como pano de fundo essa "musa inspiradora", a morte. Camus termina o seu primeiro ensaio desta obra afirmando a morte para todos, mas para cada um a sua morte e termina igualmente o seu segundo ensaio com uma alusão no mesmo âmbito. Com a Morte na Alma é o título do seu terceiro ensaio e o último fala-nos de um estranho amor de viver que não é mais, no fundo, do que um terrível medo de morrer. A aventura de Calígula inicia-se com uma morte- a de sua irmã e amante Drusilla- e termina igualmente com a sua própria morte. O Estrangeiro começa com uma alusão à morte da mãe de Mersault e termina igualmente com a condenação do herói. O Mal-Entendido , esse, não é mais do que a trama de uma morte, a de João, que é estudada meticulosamente e termina com dois suicídios- o de Martha e o de sua mãe- A morte como experiência generalizada surge-nos em A Peste, mas é em O Mito de Sísifo que a morte assume a sua maior importância, já que é nesta obra que o problema da cisão, da ruptura, é tratado de forma mais apaixonante.

Como temos oportunidade de constatar, a morte assume um papel primordial, aparecendo-nos como constitutiva do mal metafísico, juntamente com a própria ausência de explicação e de unidade. No fundo, todas as personagens de Camus afirmam não merecer tal condição de exílio num mundo, ele próprio, submetido à morte sem esperança e ao sofrimento, mesmo no caso de serem responsabilizados, tratados como culpados: O mal que me fizeste é demasiado grande e demasiado o mal que vos fiz para que seja voluntário. Para não se odiar a si mesmo, ser-lhe-ia necessário declarar-se inocente, ousadia sempre impossível para o homem só: a dificuldade está em que ele se conhece. Pode-se ao menos declarar que todos são inocentes embora os tratem como culpados...42

O Bem e o Mal são, eles próprios, definidos em termos de unidade e divisão pois posso negar tudo dessa parte de mim que vive de nostalgia incerta, salvo esse desejo de unidade43. O mundo está sob o signo da divisão e , quer nele quer fora dele, o homem só encontra desordem e ausência de unidade. Tudo lhe é possível refutar, à excepção da anarquia reinante no mundo: E sei ainda que não posso conciliar estas duas certezas, o meu apetite de absoluto e de unidade e a irredutibilidade deste mundo a um princípio racional e razoável44. Mas o facto é que, se bem que inocente quanto ao mal metafísico, o homem é simultaneamente inocente e culpado no que concerne ao mal moral: é inocente em virtude da presença do mal na própria raíz da vontade, presença esta anterior à própria acção livre sendo nesta medida inexplicável; culpado, relativamente ao mal desencadeado pela liberdade. O homem pode fazer o mal voluntariamente e, nesta medida, é necessário olhar os homens na sua malícia, nos seus ódios e vontade de sangue. Não obstante a sua natureza, o homem é também capaz de fazer o bem, e é a ele que Camus irá remeter no sentido de corrigir o mundo da história.

A presença do mal como algo não só anterior à própria acção, mas também inerente à natureza humana, terá sido provavelmente uma recuperação, por parte de Camus, da própria noção de "pecado original" pertencente à teologia cristã. Segundo esta concepção, uma falta inicial nas origens do homem teria tido como consequência o desacordo entre o homem e o mundo, entre os homens e os seus semelhantes, instaurando um desequilíbrio no interior de si mesmo. No entanto, Camus rejeita tal concepção de "falta original", ao mesmo tempo que rejeita a necessidade da "graça" para restabelecer a harmonia originária. Todavia, parece-me inegável que esta concepção religiosa influenciou consideravelmente todo o seu pensamento., encontrando-se subjacente à própria filosofia do absurdo, onde o mundo não é mais do que um estado de "pecado" sem Deus pois o absurdo que é o estado metafísico do homem concreto, não conduz a Deus (...) o absurdo é o pecado sem Deus.45

A condição metafísica é colocada sob o signo da injustiça de Deus que condena o homem ao exílio, à morte, ao mal e Camus liga o problema da liberdade face ao mal, ao problema de Deus, como podemos constatar nas seguintes linhas: Porque, perante Deus, há menos um problema de liberdade do que um problema do mal. Conhece-se a alternativa: ou não somos livres e Deus-Todo-O-Poderoso é responsável pelo mal, ou somos livres e responsáveis e Deus não é Todo-o-Poderoso. Todas as subtilezas de escolas nada acrescentaram ao carácter categórico deste paradoxo46.

Inevitavelmente estamos perante o mal e a verdade é que não encontramos ainda a resposta definitiva. O problema inultrapassável foi desde sempre e ainda o é, o problema do mal.

4- Angústia e nostalgia

Expulso do paraíso, o homem reconhece doravante o seu eu enquanto entidade distinta, fragilizada e indefesa perante os não-eus já anteriormente referidos e que surgem, justamente, como inimigos ferozes e hostis. O não-eu físico revolta o homem em virtude da sua manifesta indiferença e estranheza. O não-eu metafísico humilha-o cabe ao homem camusiano lutar pela sua sobrevivência e defender-se das hostilidades, mas ao tentar fazê-lo descobre não só a ineficácia das suas armas, como também o quanto insignificantes são as suas possibilidades! A sua razão que ele queria infinita não representa quase nada. O estado de guerra é total tanto no interior de si mesmo, como no seu exterior: à ameaça do outro junta-se uma outra proveniente do seu íntimo, a falta de acordo, a não coincidência. Se o exílio metafísico condenou o homem ao abandono no mundo, o exílio psicológico vota-o à solidão e assim, abandono e solidão, constituem a angústia de um mundo sem autor, a ansiedade numa sociedade destituída de humanidade. O homem é abandonado às suas próprias forças perante a inumanidade do mundo e da história, sem que possa esperar pelo auxílio de um poder superior.

Toda a obra de Camus é uma bela ilustração desta angústia humana nascida em virtude deste estado hostil, como aliás João nos confia em O Mal-entendido: Eis que, no mais fundo de mim, recomeça a minha velha angústia, como um fluído ruim que se agrava a cada movimento meu. Bem sei do que se trata. É o medo da eterna solidão, o receio de que não haja uma resposta47. Também em O Avesso e o Direito Camus nos diz que o seu sentimento de fraternidade se afunda no sentimento da solidão que é constitutivo dessa angústia humana: para não fugir é preciso recordar que cada um daqueles espectadores tem uma entrevista consigo mesmo, que o sabe e que, sem dúvida, irá a ela dentro em pouco. No mesmo instante, ei-lo de novo fraternal- as solidões reúnem o que a sociedade separa.48

São, pois , a lei da separação e a lei da unidade que estão na origem do estado de angústia. O sofrimento da separação é o sofrimento de uma ausência de unidade que é, no fundo, a própria razão de ser do homem. Precisamente porque é feito para viver feliz na união, ele sofre com a separação.

Neste sentido, a caminhada do homem camusiano é uma longa e árdua procura da perdida unidade primordial. Na terrível angústia da separação, o homem sente uma profunda nostalgia de união que agrava consideravelmente o seu sofrimento. A angústia e a nostalgia afirmam-se doravante sentimentos inseparáveis: separação e comunhão. Todo o problema da felicidade se joga nesta antítese. Quanto mais a dor se afirma insuportável, maior é a aspiração à libertação e mais esta se afigura urgente.

Em O Mito de Sísifo, onde a separação aparece como um mal ou absurdo supremo, a unidade deseja-se como bem absoluto, pois se o homem reconhecesse que o universo também pode amar e sofrer, reconciliar-se-ia com ele. Se o pensamento descobrisse, em espelhos cambiantes, fenómenos, relações eternas que pudessem resumi-los e resumir-se a si próprias num princípio único, poder-se-ia falar de uma felicidade do espírito ao pé da qual o mito dos bem-aventurados não mais seria do que uma ridícula falsificação. Essa nostalgia de unidade, esse apetite de absoluto, ilustra o movimento essencial do drama humano49. A nostalgia de união não é algo de efémero, de passageiro, mas algo de fundamental respeitante à própria vida e à própria morte do homem.

Qualquer ser consciente aspira, de facto, mesmo que o ignore, à unidade e sob diversas formas: desde a criação artística de todos os géneros, ao amor, aos actos revolucionários, religiosos e até criminais.

Perante a angústia e a nostalgia, perante um tal estado de coisas que constituem um longo sofrimento, impõe-se ao homem uma necessidade vital que é a de sair dessa prisão a todo o custo.

5- A solução do problema: A Revolta

Tiro assim do absurdo três consequências que são a minha revolta, a minha liberdade e a minha paixão.50

A revolta é o protesto , a obstinação, a recusa, o confronto. Face ao absurdo uma das posições filosóficas coerentes é a revolta. Ela é o confronto perpétuo do homem e da sua própria absurdidade É a exigência de uma impossível transparência. Equaciona o problema do mundo (...) é a presença constante do homem em si próprio. Não é a aspiração, pois é sem esperança. Esta revolta não passa da certeza de um destino esmagador, mas sem a resignação que deveria acompanhá-la.51

A revolta exige uma lucidez sem tréguas: manter a clarividência e o conhecimento dos muros que cercam o homem: a tenacidade e a clarividência são espectadores privilegiados nesse jogo desumano em que o absurdo, a esperança e a morte travam o seu diálogo.52 É necessária uma constante ascese para que seja possível ao homem manter-se no absurdo uma vez reconhecido este. A revolta não altera a natureza do absurdo, confere-lhe sim, uma maior agudeza pela intrínseca gratuitidade que proclama. No domínio da total inocência que é a sua, o herói absurdo reivindica a responsabilidade de manter uma lucidez sem tréguas.

O impacto do absurdo confunde-se com a descoberta de uma nova liberdade. O absurdo depressa de erige numa verdadeira aposta individual: a mais total das liberdades. É o pressentimento da morte que dá à liberdade camusiana todo o seu significado excepcional. Para o homem absurdo , jamais separado da morte, esta afirma-se o seu espanto ao mesmo tempo que a sua paixão nocturna. É ela que marca o limite do seu conhecimento e o homem refugia-se na liberdade que lhe surge como a primeira ou a mais essencial das reivindicações. Anteriormente (antes do despertar da consciência) o homem vivia quotidianamente com os seus objectos, com o futuro e agia como se fosse realmente livre, mas descoberto o absurdo tudo muda uma vez que o homem compreende que até aqui estava ligado a este postulado de liberdade e que vivia nessa ilusão. Isso constrangia-o, em certo sentido. Na medida em que imaginava uma finalidade para a sua vida, conformava-se com as exigências de uma finalidade a alcançar e tornava-se escravo da sua liberdade53. Esta liberdade para o homem absurdo surge fora de Deus, caso contrário não mais seria do que uma sujeição pois não posso compreender o que pode ser uma liberdade que me seria dada por um ser superior54.

A liberdade não se exerce em função de uma vida eterna, mas permanece como campo de exercício na vida presente, no tempo presente. O homem gozará então, a disponibilidade do condenado à morte: esse incrível desinteresse perante tudo, salvo a chama pura da vida, a morte e o absurdo são aqui, bem o sentimos, os princípios da única liberdade razoável: a que um coração humano pode sentir e viver.

Se bem que se trate de uma liberdade fora de Deus tem, contudo, os seus limites já que o absurdo não liberta, amarra. Não autoriza todos os actos. Esse "tudo é permitido" não significa que coisa alguma seja proibida. O absurdo dá somente a sua equivalência às consequências dos actos. Não recomenda o crime, isso seria pueril, mas restitui ao remorso a sua inutilidade55.

Uma outra consequência da filosofia do absurdo é a paixão, o ardor de viver: Mas que significa a vida em tal universo? De momento nada mais do que a indiferença pelo futuro e a paixão de esgotar tudo o que nos é dado56. Esta paixão é também viver sem o apelo a Deus, ou seja, o homem absurdo não deve fazer intervir o que é tão incerto como o eterno, vivendo apenas com o que é verificável. E então, afastado do eterno, o homem mergulhará no tempo: O que é com efeito o homem absurdo? Aquele que, sem o negar, nada faz pelo eterno. Não que a nostalgia lhe seja estranha. Mas prefere-lhe a coragem e o seu raciocínio. A primeira ensina-o a viver sem apelo e a bastar-se com aquilo que tem , a segunda instrui-o acerca dos seus limites e assim o presente é a sucessão dos presentes perante uma alma sempre consciente, é o ideal do homem absurdo57. Neste sentido, a paixão implica viver quantitativamente, ou seja, a ética do absurdo não é uma ética da qualidade, mas uma ética da quantidade. Se me persuado de que esta vida não tem outra face que não seja a do absurdo, se sinto que todo o seu equilíbrio depende dessa perpétua oposição entre a minha revolta consciente e a obscuridade onde ela se debate, se admito que a minha liberdade não tem sentido a não ser em relação ao seu destino limitado, então devo dizer que o que conta não é viver melhor, mas viver mais.58

-A revolta Negativa-

Todos os heróis de Camus se revoltam: Calígula contra o destino, os deuses e a morte; Sísifo, contra o absurdo; Mersault, contra os outros; Martha, contra a própria injustiça da condição humana. Se bem que todos estes heróis se revoltem, a revolta não é sempre feita da mesma maneira: a revolta de O Mito de Sísifo, por exemplo, não é a mesma de O Homem Revoltado; enquanto que esta última visa encontrar a união, a fraternidade, a primeira visa fazer da reinar a diversidade e consequentemente a separação. Em O Homem Revoltado, há um valor eterno pelo qual tudo vale, enquanto que no Mito de Sísifo, a revolta é "para nada": (...) revolta tenaz contra a condição, a perseverança num esforço tido por estéril (...) constitui uma ascese (...) tudo isto para nada, para repetir e espezinhar.59

Se bem que seja uma revolta contra a angústia da separação a revolta é, simultaneamente, uma revolta para e contra a própria separação. Como exemplo desta revolta temos Calígula, Sísifo e Martha.

Calígula vai-se insurgir contra a condição humana perante a morte da sua irmã e amante Drusilla afirmando que as coisas, tal como são, não me parecem satisfatórias...até há pouco tempo, eu não sabia. Agora sei. Este mundo, tal como está feito, não é suportável. Tenho, portanto, necessidade da lua, ou da felicidade, ou da imortalidade, de qualquer coisa de demente, mas que não seja deste mundo.60

A vida é, desta feita, governada pela morte absurda e o homem, esse, é obrigado a viver nessa separação, embora o seu desejo seja o de união e amor. E, precisamente, porque a vida obriga Calígula a isto, ele decide permanecer em "pé de igualdade", pagando na mesma moeda: compreendi simplesmente que só há uma maneira de nos igualarmos aos deuses: é tornarmo-nos tão cruéis como eles...se exerço este poder é por compensação (...) à estupidez e ódio dos deuses.61 Calígula vai manter este estado de separação não apenas por uma questão de vingança, mas também por uma questão de "pedagogia", isto é, para mostrar aos seus concidadãos a verdadeira condição insuportável em que vivem, no sentido de os fazer olhar de frente: E justamente, tenho meios para os obrigar a viver na verdade, porque eu sei o que lhes falta (...) eles estão privados de conhecimento, porque lhes falta um professor que conheça aquilo que ensina.62

Na sua missão de pedagogo, Calígula vai mostrar aos seus concidadãos o estado de separação que caracteriza toda a condição humana sob as formas em que aquele se apresenta; exílios psicológico, social e metafísico.

No sentido de mostrar aos seus concidadãos o carácter de não coincidência, de duplicidade inerente ao próprio eu, chama todos os presentes no palácio e manda-os aproximarem-se de um espelho, dizendo de forma algo extravagante: Venham todos. Aproximai-vos. Ordeno que se aproximem. É um imperador que o exige. E agora chega-te para o meu lado Cesónia (agarra-a pela mão, condu-la até junto do espelho e, com o macete apaga freneticamente uma imagem sobre a superfície polida. Ri.). Acabou-se, vês...mais nada. Acabaram-se as recordações, desapareceram todos os rostos. Acabou-se. E, sabes o que ficou? Aproxima-te mais. Olha. Aproximem-se. Olhem. (Diante do espelho porta-se de forma demente). Cesónia (olhando o espelho aterrorizada): Calígula! (E Calígula muda de tom, pousa um dedo sobre o espelho e com um olhar fixo, diz numa voz triunfante): Calígula.63

Seguidamente Calígula vai ilustrar essa outra oposição que é a do eu e do outro, escolhendo como modelo a relação senhor/ escravo (talvez a mais autêntica e antagónica) instituindo-se senhor absoluto e transformando patrícios e senadores em seus escravos. Serve-se da sua vontade de poder e condena à morte, toma as mulheres dos seus concidadãos e obriga estes a rir sem razão, ou pior ainda, a rir de razões que os deveriam fazer chorar: Não ris? (pergunta a Lépido a quem havia morto um filho). Ninguém ri? Então ouçam (tomado de violenta cólera). Quero ver toda a gente a rir. E tu também Lépido. E todos os outros. Levantem-se, riam (dando murros na mesa). Eu quero, ouvem, quero ver-vos rir...não, mas olha-os Cesónia, tudo se desmorona. Honestidade, respeitabilidade, tudo desaparece diante do medo64.E concluindo acerca destas relações sociais afirma que apesar de tudo, não tenho muitas maneiras de provar que sou livre.65

Com o intuito de mostrar a oposição do eu aos deuses e ao destino, Calígula obriga Cesónia a Helicon a recitarem preces ridículas e incompreensíveis em tom de parada, no sentido de revoltar todos aqueles que as recitem: Aproximem-se! Aproximem-se! (recita Helicon em voz de parada). Os deuses desceram à Terra uma vez mais. Caius-César e Deus- denominado Calígula emprestou-lhes a forma humana. Aproximem-se grosseiros mortais, tendes diante dos olhos o milagre sagrado. Por especial deferência divina do reino abençoado de Calígula, são oferecidos os segredos divinos a todos os olhos...66

A última lição de Calígula tem por tema a morte Reúne todos os poetas para que estes organizem um concurso de poesia cujo tema será, justamente, a morte. No sentido de melhor os humilhar e revoltar, obriga-os a marcharem em fila e a trazerem penduradas tabuletas onde deverão escrever as suas composições. Mas é sobretudo na sua solidão, ou na intimidade com alguns amigos, que Calígula reconhece de forma mais sincera e profunda o ódio votado aos deuses, ao destino e à morte: Calígula! Tu também és culpado...(angustiado, comprimindo-se contra o espelho). Bem vês: Helicon não veio. Não terei a Lua... se tivesse tido a lua se o amor fosse suficiente, tudo estava modificado. Mas onde ir saciar esta sede?...sei, e tu sabe-lo também. (estende a mão para o espelho, chorando), que bastaria existir o impossível! Procurei-o nos limites do mundo, nos confins de mim mesmo...estendo as minhas mãos...e é a ti que encontro, sempre a ti, diante de mim sempre cheio de ódio(...).67

Mas quer em público, quer em privado, a vontade de Calígula é sempre a de levar até ao fim o conflito, de ser consequente. Na ausência de uma felicidade unitária, Calígula pretende encontrar um "felicidade demente". Mas uma vez que a revolta negativa é, também, uma revolta contra a separação, e abolir a separação pela separação implica o homicídio e a destruição, após ter morto os senadores, Calígula estrangula Cesónia, sua fiel amante e deixa partir o seu melhor amigo, Cipião, acabando no fim por se auto-destruir. Calígula morre, mas não o problema que ele encerra, já que este é inerente à própria condição humana, marcada pelo conflito, e à consciência do eu e do não-eu

Apesar de tudo, apesar da destruição, Calígula diz-nos que a morte não é a solução, ou se o é, trata-se de uma solução niilista, já que a separação não é destruída, mas antes perpetuada. Matando os outros para deles se desembaraçar, ou suicidando-se para apagar a sua consciência, Calígula só encontrou o Nada, jamais a unidade que procurava.

Calígula morre, mas deixa a sua herança a Sísifo. Como revoltado metafísico e separatista, Sísifo é herdeiro de Calígula ainda que altere o objectivo e a táctica da revolta, ao transformar a derrota de Calígula numa vitória. Os gritos de desespero do jovem imperador são transformados, por Sísifo, em gritos de alegria, ou seja, o mundo absurdo tem como suporte uma espécie de felicidade metafísica: Não descobrimos o absurdo sem nos sentirmos tentados a escrever um manual qualquer de feliciade.68

Se Calígula fracassou foi porque pretendia "qualquer coisa que não fosse deste mundo", algo que transcendesse e assim unificasse a pluralidade do mundo fenoménico, mas Sísifo sabe que é impossível obter "qualquer coisa que não seja deste mundo" e, neste sentido, a sua ética é outra, isto é, o que interessa não é a unidade, mas a própria quantidade, a diversidade. Calígula, porque pretendia a unidade, viu-se na necessidade de abolir as contradições, enquanto que Sísifo pretende, pelo contrário, mantê-las enquanto tal. O objectivo da revolta é, agora, totalmente temporal e terrestre: O que é com efeito o homem absurdo? Aquele que, sem o negar, nada faz pelo eterno 69. No sentido de excluir a unidade, tão desejada por Calígula, Sísifo começa desde logo por recusar os métodos de Calígula, ou seja, a morte e a loucura dizendo que a loucura e a morte são os seus irremediáveis...pelo jogo da consciência, transforma em regra de vida aquilo que era convite à morte- e recusa o suicídio (...) digamos que o único obstáculo, o único impossível de ganhar é constituído pela morte prematura. O universo aqui sugerido só vive por oposição a essa constante excepção que é a morte70, e emprega um outro tipo de métodos, digamos que "positivos", substituindo o eterno pelo temporal, a unidade pela totalidade, multiplicando tudo aquilo que não pode unificar. A crença no sentido da vida pressupõe sempre uma escala de valores, uma escolha, as nossas preferências. A crença no absurdo, segundo as nossas definições, ensina o contrário.71

Os modelos que Sísifo nos propõe como heróis da sua moral quantitativa são Don Juan, o comediante ou actor, o conquistador, o viajante e o criador absurdo. Don Juan, por exemplo escolheu não ser nada (...) o homem absurdo multiplica o que não pode unificar. Assim, descobre nova maneira de ser que pelo menos liberta tanto quanto liberta os que dele se aproximam...são todos esses rostos e todos esses nascimentos que compõem para Don Juan, a girândola da sua vida72. O comediante, esse, aplica-se de todo o coração a não ser nada ou a ser vários (...) o actor tem da personagem absurda (...) a monotonia, essa silhueta única e obsessiva, ao mesmo tempo estranha e familiar(...)e confunde-se com a outra personagem absurda que é o viajante. Tal como este, ele esgota alguma coisa, percorre sem cessar. É o viajante do tempo e, pensando melhor, o aflito viajante das almas.73 Para o criador absurdo o essencial é que triunfem (as imagens das suas obras) no concreto e que seja essa a sua grandeza (...) todos os pensamentos que renunciam à unidade exaltam a diversidade. E a diversidade é o lugar da arte.74

Qualquer um dos modelos apresentados por Sísifo pretende esgotar todos os números e todas as quantidades e esgotar-se a si próprio: Que significa a vida em tal universo?(...) O homem absurdo tem de esgotar tudo e esgotar-se(...)escolho somente os homens que apenas procuram esgotar-se ou dos quais eu tenha, por eles, consciência de que se esgotam.75

Trata-se de bater recordes e de ganhar a moral quantitativa. O campeão absurdo não precisa de unidade nem de amor. Toda a sua vida se resume a uma batalha que é preciso ganhar a todo o custo. Todas as suas relações com o mundo são, neste sentido, conflituosas.

Calígula não encontrou a felicidade porque lhe foi impossível realizar a unidade desejada, condição essencial. Sísifo tem de se contentar com a ausência da mesma, ou com uma "unidade múltipla" acabando por se declarar, no fim, feliz e é a imaginá-lo feliz que Camus nos convida a olhar para Sísifo. Mas nós sabemos que Sísifo não é feliz nem pode sê-lo. Uma tão grande insistência, tanto da parte de Calígula como de Sísifo numa felicidade separatista, não é mais do que sinónimo da ausência total de felicidade. Ninguém consegue viver eternamente na aceitação da separação e talvez por isso Camus tenha pretendido mostrar o herói da revolta negativa sob a forma de um herói mítico e não, sob a forma de um ser humano- Sísifo vive amargurado porque este inferno presente é, enfim, o seu reino.76

Não só a felicidade de Sísifo é impossível, como também a sua filosofia, porque está para além das forças humanas e neste sentido Sísifo é inferior a Calígula já que este, apesar de tudo, realizou a sua teoria. Sísifo, esse, ficou-se pela teoria.

Calígula foi de uma lógica irreparável até ao fim; ensinou a revolta negativa e, simultaneamente, a destruição e a morte. Sísifo quis ensinar essa mesma revolta, mas recusando os meios de Calígula, pois não sabia que para bater todos os recordes e ganhar a tal moral quantitativa é preciso destruir os outros. Sísifo só é, de facto, heróico porque não acedeu à tentação de desistir.

Martha vai mostrar em O Mal-entendido que para ganhar a moral quantitativa é preciso destruir os outros. Como para Sísifo, também para Martha o mundo não pode ser unificado, ele é um perpétuo mael-entendido e é pensando nestes termos que Martha diz a Maria: (...) não posso morrer deixando-a com a ideia de que tem razão, de que o amor não é inútil e de que tudo isto foi um acidente. É agora que tudo está em ordem (...) nem na vida nem na morte existe pátria ou paz, porque não se pode chamar pátria a esta terra estreita, privada de luz onde damos de comer a animais cegos.77

Martha à semelhança de Sísifo, multiplica o que não pode unificar, ou seja, "desembaraça-se" dos outros para amontoar o dinheiro suficiente de que precisa para ter os seus prazeres, ganhando deste modo a sua moral quantitativa. Para se manter fiel à sua teoria, Martha não pode amar ninguém à excepção dela própria, ou da sua felicidade e tanto assim é que perante o cadáver do seu irmão, não se arrepende de o ter morto, mas apenas lamenta ter perdido a sua felicidade: Não! Não me competia velar pelo meu irmão e, no entanto, eis-me exilada no meu próprio país (...)mas não me competia velar pelo meu irmão, e aí é que está a injustiça feita à inocência. Ele acaba de conseguir o que desejava,. Ao passo que eu fico sozinha, longe do mar porque ansiava. Odeio-o!78

Tendo apenas como objecto do seu amor o seu próprio eu, Martha tem de odiar a sua mães (o não-eu social) e Deus (o não-eu metafísico) e é esse ódio que brota dede ntro de si, quando dirigindo-se à sua mãe exclama: Que ele morra, pois, visto que não sou nada! Que as portas se fechem à volta de mim! Que me deixem entregue à minha cólera justa...oh! como odeio este mundo em que estamos reduzidos a Deus! Mas eu, eu que sofro de injustiça, eu que não tive aquilo a que tinha direito- não me ajoelharei! Privada do meu lugar sobre a Terra, repudiada por minha mãe, sozinha no meio dos meus crimes, deixarei este mundo sem me ter reconciliado79. Como discípula de Sísifo, Martha pretende viver sem apelo, na separação, opondo-se desta forma a João cuja posição é a da unidade, procurando o amor e a reconciliação. Assim, quando João lhe fala de amizade, de afeição, Martha diz-lhe que: não tem de se preocupar com a nossa solidão (...) mantenha-se no seu lugar de cliente(...) mas não exija mais (...) porque só temos vantagem, ambos, em manter as nossas distâncias (...) o coração não é para aqui chamado(...) longos anos cinzentos passaram sobre este pequeno ponto (...) e pouco a pouco arrefeceram esta casa levando com eles todo o nosso grito de simpatia...80

Trata-se de duas atitudes fundamentalmente diferentes perante a vida: a do amor e a do ódio. O Mal-entendido termina com a vitória moral de João sobre Martha, ou seja, a mães que sempre esteve do lado de Martha, suicida-se para se juntar ao filho. E quanto a Martha, esta acaba por confessar que não pode viver na solidão, pois no mínimo precisa do amor de sua mãe e que a felicidade não pode ser encontrada na separação, como acaba por confessar a Maria: Como ele, eu pensava ter a minha casa. Imaginava que o crime era o nosso lar e que nos tinha unido, a minha mãe e a mim, e para sempre. E para quem no mundo poderia voltar-me a não ser para aquela que matara ao mesmo tempo que eu? Mas estava enganada- o crime também é uma solidão mesmo que sejam muitos a cometê-lo. E é justo que eu morra só, depois de ter vivido e matado sozinha.81 Como podemos constatar, Martha tal como Calígula, levou até ao fim a sua filosofia, sabendo que depois de ter morto é preciso que morra também e antes de morrer propõe a Maria uma solução para reencontrar um certo tipo de unidade e felicidade: Peça ao seu Deus que a faça semelhante à pedra. É a felicidade que ele toma para si, a única felicidade verdadeira. Faça como ele, torne-se surda a todos os gritos, regresse à pedra enquanto é tempo. Mas se se sente demasiado cobarde para entrar nessa paz obscura, então venha juntar-se a nós, na nossa casa comum. Adeus minha irmã! Tudo é fácil, como vê. Terá de escolher entre a estúpida felicidade das pedras e o leito escorregadio em que a esperamos.82

Se bem que Martha empregue os mesmos métodos de Calígula- destruição/ assassínio/ loucura- há que estabelecer diferenças: para Calígula, a loucura tinha na sua origem a ausência do mar ou de uma felicidade terrestre e aqui, Martha segue os princípios da filosofia absurda de Sísifo. Martha é Sísifo e Calígula simultaneamente, e prova melhor do que ninguém, que o que está no fim da revolta negativa é o Nada.

- A revolta unitária-

Chegados ao nada pela via da revolta negativa, resta-nos imprimir uma nova direcção à revolta que possa conduzir a um sentido. Para ser, o homem deve revoltar-se, mas a sua revolta deve respeitar o limite que nela própria descobre, limite em que os homens, unindo-se, começam verdadeiramente a ser83. Mas como podem os homens se juntar e não mais se separar, se pela via da revolta negativa o homem camusiano fez "tábua rasa" dos valores comuns e destruiu tudo aquilo que poderia permitir o reencontro humano? Para que seja possível uma nova direcção para a revolta, Camus segue o exemplo de Descartes, afirmando que o absurdo tal como a dúvida metódica pode, mudando de atitude, orientar uma nova busca. O raciocínio desenvolve-se então da mesma forma. Eu grito que não creio em coisa alguma e que tudo é absurdo, mas não posso duvidar do meu grito e tenho pelo menos de crer no meu protesto.84 Camus tira da revolta a existência de um primeiro valor positivo: A revolta nasce do espectáculo de insensatez, perante uma condição injusta e incompreensível. Mas o seu impulso de cega reivindica a ordem no meio do caos e a unidade mesmo no âmago daquilo que foge e se desvanece. Ela grita, ela exige, ela quer que o escândalo cesse e se fixe finalmente85.

Mas o que é um homem revoltado? É um homem que diz "não" (mas ao recusar não renuncia) e também um homem que diz "sim" a partir do seu primeiro movimento. Dizer "não" significa que "algo dura há muito", que "até certo ponto sim, a partir de certo ponto não", ou seja, afirma-se a existência de uma fronteira, ao mesmo tempo que se afirma o que está do lado de cá da fronteira. Demonstra-se que existe algo que vale a pena e que tem de ser tido em conta. A negação não é mais do que a comprovação de um limite além do qual não é possível passar, dizer "sim" é afirmar a existência de um valor, de uma parte á qual o revoltado adere. Este valor transforma-se para o revoltado num bem supremo.

Camus para melhor ilustrar o movimento da revolta, serve-se do quadro hegeliano da dialéctica senhor/escravo: durante muito tempo o escravo aceita tudo, obedece ao senhor, mas pouco a pouco vai-se instalando a impaciência e com ela nasce um sentimento, um valor pelo qual vale a pena viver e dar a vida ,inclusivamente, se for necessário. Este valor transforma-se num bem supremo: é o tudo ou nada- a vertigem da revolta. Este "tudo ou nada" significa que o escravo se sacrifica por um bem que ultrapassa e seu próprio destino. O fundamento desse valor é a própria revolta. A solidariedade dos homens baseia-se no movimento da revolta86, ou seja, a revolta desemboca na solidariedade porque os homens têm uma natureza comum que é preciso respeitar.

O valor descoberto no acto da revolta não é individual, mas identifica-se com o ser que é universal, constituindo-se assim como instância universal: No seu protesto contra a contradição, no que ela possui de imperfeito devido à morte e no que oferece de disperso por obra do mal, a revolta metafísica é a reivindicação motivada de uma unidade feliz contra a dor de viver e de morrer87. O valor pluraliza: A revolta metafísica é o movimento pelo qual um homem insurge contra a sua condição e contra a criação inteira.88 Ela recusa a condição no que esta tem de inacabado pela morte e de inaceitável em virtude da obscuridade do sofrimento e da morte. Aos olhos do revoltado, esta provém de um princípio de injustiça que se confunde com Deus e, por isso, se ergue contra a criação e o criador, o que não significa que se esteja necessariamente face a um movimento ateu, mas apenas face a um movimento blasfemador, pois Deus é o responsável pela infelicidade humana.

Eis-nos assim no termo da busca que havia começado com O Mito de Sísifo. Se bem que a revolta não tire o homem do seu desamparo permite, ao menos, antever a existência de um vínculo, de uma "cumplicidade". Neste ponto Camus afasta-se, evidentemente, de Sartre e de Marcel, uma vez que o universo destes é um universo individualista. Os homens torturam-se entre si. A relação positiva, para Sartre, encobre uma atitude de possessão ou de coisificação do outro. Em Camus, o acto da revolta descobre a própria solidariedade humana.

Camus não deve, neste sentido, ser confundido com os existencialistas. Para estes, e de uma forma geral, falta ao homem a essência, o seu ser não está constituído, daí a necessidade de um tipo de acção que tenda à realização de uma existência que, no começo, apenas existe como mera possibilidade. O existencialista parte do pressuposto de que o homem conta, por um lado, com lucidez suficiente para construir a personagem que escolhe ou projecta ser e, por outro lado, com uma situação suficientemente cómoda de forma a estar em condições de se decidir por uma determinada maneira de viver. O mesmo se passa no plano da moralidade: o existencialista analisa a situação pessoal de um homem face ao seu destino, descreve o drama cuja única personagem é ele próprio, face à possibilidade de escolha entre o estado de coisa ou levar a cabo uma vida plena de iniciativas e responsável. Para Camus, o outro assume papéis decisivos. O outro é, por um lado, o agente da opressão e da degradação e, por outro, a revolta só se justifica quando o indivíduo se transcende nos outros indivíduos. O revoltado não escolhe, à maneira do existencialista, entre projectos ou entre a autenticidade e a inautenticidade. Trata-se, desde logo, de ser ou não ser, do tudo ou nada e da fidelidade ao que se descobriu, daí que seja necessário estabelecer diferenças entre a revolta e a revolução. O revolucionário não parte do ser que a própria revolta descobriu, revelou, .as de uma ideia abstracta; não parte da própria experiência humana, mas de um projecto despótico e totalitário, afastando-se do presente imediato, da realidade de onde partiu, remetendo a felicidade para um futuro utópico. O revoltado, pelo contrário, pretende ajustar a sua conduta à origem de onde partiu. O homem aparece sempre um ser dividido; se a revolta mostra que o homem é, no geral, injusto com os seus semelhantes, revela igualmente que nele há algo que aspira à unidade de todos, que exige que se leve a cabo uma solidariedade metafísica.

A revolução acaba por ser uma traição à revolta ,já que nega o ser e a natureza humana; a sua reivindicação é a totalidade, ao passo que a reivindicação da revolta é a unidade.

A exigência universal de unidade é o fundamento da revolta unitária, que mais não é do que a exigência de amor. Em todos os movimentos de revolta, a reivindicação de unidade confunde-se com a reivindicação do amor. O drama de Karamazov (...) nasce do facto de haver demasiado amor sem objectivo. Quando se nega Deus, este amor deixa de ter em que se empregar, recai então, em nome de uma generosidade humana, sobre o ente humano.89

O amor que é descoberto pelo homem camusiano no próprio coração da revolta, não é apenas o amor para com os homens, uma vez que o estado de separação é generalizado e assim extensível ao céu, à terra e a ele mesmo. Neste sentido, o homem tem necessidade de uma união universal com toda a existência para encontrar a felicidade de viver e de morrer. O primeiro passo da revolta unitária é, justamente, procurar uma certa forma de amor para que a partir daí seja possível a sua realização. Aos olhos do homem camusiano, a procura do amor perfeito afigura-se fundamental. A felicidade encontra-se, não no acto de negar, mas sim no acto de amar.

6- Conclusão

É difícil escrever sobre o próprio rosto. Percorrendo atentamente as páginas de Camus, é quase impossível não nos identificarmos com as suas personagens: hoje ou ontem, nós somos ou fomos, de uma forma ou de outra, um pouco de Martha, Sísifo, Mersault, Clemance e todas as outras personagens, porque acima de tudo elas encarnam o drama fundamentalmente humano que é a questão do (não) sentido. Talvez por este facto Camus ultrapasse em muito a relação escritor/público, cativando todos aqueles que, se bem que dele distantes no tempo, são dele contemporâneos nas questões colocadas à condição humana.

O homem camusiano é, acima de tudo, fiel; com os dois pés assentes no chão, tem como objectivo permanecer fiel à terra e, nascido de uma espécie de acaso, também num lugar de acaso, faz disso a sua vida e a sua própria vocação. É à terra que Camus dedica toda a sua atenção: à terra onde vivem e morrem os homens, sem se afastar jamais daquilo que os persegue e sem negar nenhuma das suas lutas! E é no homem que Camus acreditava! Possuía uma profunda esperança nas virtualidades redentoras do homem, esperança essa que o levou a "imaginar Sísifo feliz" uma vez que este renova diariamente a liberdade do seu sonho.

É necessária uma leitura atenta para que seja possível compreender que a procura da felicidade é o grande eco e a grande memória de todas as suas obras. Mas quantas questões permanecem no ar?!

Sem nunca ter pretendido ser filósofo ou um grande pensador, Camus acabou por sê-lo à sua maneira. No seu silêncio definitivo os seus livros não nos deixam, jamais, de nos interrogar.

E atrevo-me, então, a concluir colocando na boca de Unamuno a mensagem de Camus a todos aqueles que não podem viver privados do diálogo e da amizade dos homens: (...) eu não podia acreditar nessa atrocidade de um inferno, de uma eternidade de dor, nem via inferno mais verdadeiro do que o nada e a sua perspectiva. E continuo a crer que se todos nós acreditássemos na nossa salvação do nada, todos seríamos melhores, in O Sentimento Trágico da Vida.

7- Notas

1 O Avesso e o Direito, p.15
2 Ibid., p.67
3 Ibid., p. 68
4 Ibid., p.69
5 Ibid., p. 69
6 Ibid., pp.11 e 12
7 Ibid., pp.20 e 21
8 Ibid., p. 14
9 Cartas a Um Amigo Alemão., pp. 79, 83 e 84.
10 Actuais., pp. 163/4
11 Ibid., p.163
12 Ibid., p 165
13 O Mito de Sísifo, p.69
14 O Mito de Sísifo, pp. 151/2
15 Cartas a Um Amigo Alemão, p.81
16 O Mito de Sísifo, p.67.
17 O Avesso e o Direito, p.31
18 O Mito de Sísifo, p. 13.
19 Ibid., p.16
20 As Núpcias, pp.14/15
21 Ibid., p.22
22 Ibid., p.50
23 O Avesso e o Direito, pp.40/1
24 La Métaphysique du bonheur, p.30
25 O Avesso e o Direito, p.52
26 O Mito de Sísifo, p.52
27 Ibid., p.44
28 O Mito de Sísifo, p.27
29 Ibid., p.25
30 Ibid., pp.26/7
31 Ibid., pp.28/9 e 33
32 Ibid., pp.160/1
33 Ibid., p.23
34 Ibid., pp.31/2
35 O Mito de Sísifo, pp.26/7
36 A Queda, pp.171/1
37 Calígula, p.101
38 O Mito de Sísifo, p.73
39 Ibid., p.93
40 Ibid., p74
41 O Avesso e o Direito, p.40
42 O Homem Revoltado, p.218
43 O Mito de Sísifo, p.66
44 Ibid., p.66
45 Ibid., p.55
46 Ibid., p.72
47 O Mal-entendido, p.239
48 O Avesso e o Direito, p.27
49 O Mito de Sísifo, p.30
50 O Mito de Sísifo, p.80.
51 Ibid., pp69/70
52 Ibid., p.21
53 Ibid., p.73
54 Ibid., p.73
55 Ibid., p.86
56 Ibid., p.76
57 Ibid., p.80
58 Ibid., p.77
59 Ibid., pp.141/2
60 Calígula, p.22/3
61 Ibid., pp101/2
62 Ibid., p.24
63 Ibid., p-43/4
64 Ibid., pp.62/3
65 Ibid., p.69
66 Ibid., p.93
67 Ibid., p.163/4
68 O Mito de Sísifo, p.150
69 Ibid., p.85
70 Ibid., pp.79/80
71 Ibid., p.76
72 Ibid., pp.93/4
73 Ibid., pp100/01/03
74 Ibid., pp.142/3
75 Ibid., pp.71, 76 e 88
76 Ibid., p.67
77 O Mal-entendido, p.284
78 Ibid., p.272
79 Ibid., p.273
80 Ibid., pp206/7, 213/6
81 Ibid., p.282
82 Ibid., p.285
83 O Homem Revoltado, p.37
84 Ibid., p.20
85 Ibid., pp.20/1
86 Ibid., p.32
87 Ibid., p.42
88 Ibid., p.41
89 Ibid., pp.32/3

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