quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Camus, espelho de Sartre

Ensaio do norte-americano Ronald Aronson sobre o fim da amizade entre os dois intelectuais diz que um foi reflexo do outro, a despeito das diferenças ideológicas
Antonio Gonçalves Filho

Quanto mais se lê Sartre, tanto mais se lê Camus nas entrelinhas. E vice-versa. Pode parecer uma heresia para os leitores de ambos, mas não para um dos maiores especialistas na obra do primeiro, o professor norte-americano Ronald Aronson, de quem a Editora Nova Fronteira lança o oportuno Camus e Sartre - O Fim de Uma Amizade no Pós-Guerra, justamente no mês em que se comemora o cinqüentenário do Nobel de Literatura de Camus - recebido com orgulho por ele em 1957 e desprezado por Sartre, que recusaria o mesmo prêmio em 1964 por considerá-lo “um instrumento da guerra fria”, não sem antes declarar a respeito da consagração sueca do ex-amigo: “Il ne l’a pas volé” (Ele não o roubou).
Essa não foi só uma frase ambígua, que tanto pode traduzir um reconhecimento positivo como uma observação irônica (Aronson fica com a primeira opção). Os dois brigaram feio em 1952. Nunca mais se falaram. Até hoje se achava que a briga tinha apenas motivações políticas, fortes o bastante para colocar os dois em campos ideológicos opostos.
A razão política seria a guerra fria. A exemplo da “guerra ao terrorismo” declarada por Bush - “quem não está do nosso lado está contra nós” -, foi uma guerra do “bem” contra o “mal”. Para Camus, Sartre pertencia ao “eixo do mal”, por defender regimes totalitários como os da União Soviética e a violência política. Para Sartre, Camus não passaria de um anticomunista defensor do regime colonialista francês na Argélia.
Parece simples, mas os motivos da briga, concluiu Aronson, após seis anos de pesquisa, podem ter sido muito mais pueris que um conflito ideológico ou uma discussão de caráter filosófico.Camus era bonitão, fazia sucesso com as mulheres e tinha uma namorada belíssima, a atriz Maria Casarès. Sartre parecia um sapo míope e, além de tudo, reprimia seus sentimentos. Tinha de sustentar um bando de amantes que dividia com a mulher Simone de Beauvoir e ainda amargar - segundo declarou ela à biógrafa Deidre Bair - um amor não correspondido pelo amigo Camus. Sartre podia ser um gênio filosófico, mas Camus era um gênio literário.
Qualquer leitor, afirma Aronson, pode sentir o gosto sensual de areia e sol mesmo nos escritos mais pessimistas de Camus, mas dificilmente vai experimentar algo além da aridez do deserto nos textos em que Sartre fala da alienação do homem moderno. Aronson toma nitidamente o partido de Sartre, apesar de tudo. Como a esquerda radical que fechou com Sartre na época da guerra fria, Aronson considera que ele estava certo ao condenar os métodos de tortura usados pelas tropas francesas de ocupação durante a guerra da Argélia, então uma colônia francesa, e justificar o terrorismo árabe contra o colonizador.
Camus, nascido em Oran, na Argélia, critica a violência de ambos - do colonizador e do colonizado. Os moderados de esquerda fecharam com Camus. Viam os radicais como viciados em violência. Esses não tinham outra palavra para definir os moderados: vendidos.
Com Sartre fazendo tudo para apoiar a luta pela independência argelina e Camus defendendo que a Argélia devia continuar sob o controle francês, razões para desavenças não faltavam. Faltava, sim, segundo Aronson, a última faísca para botar fogo no anticomunismo de Camus, justamente Arthur Koestler, o autor de O Zero e o Infinito, que definiu a União Soviética como “autocracia autoritária com capitalismo de Estado”.
Koestler, que Camus conheceu no ano de sua viagem aos Estados Unidos, em 1946, exerceu enorme influência sobre ele. Sartre também, mas Camus jamais se considerou um existencialista de carteirinha.
O livro de Aronson é uma “biografia” desse relacionamento. E, a exemplo de Simone de Beauvoir, que ficou bastante perturbada com a amizade dos dois, Aronson está convencido de que a briga de Sartre e Camus foi também por amor. Com freqüência, nas grandes histórias de amor, os opostos se atraem e não foi diferente entre Sartre e Camus. Sartre era filho de burgueses. Camus, um pied-noir argelino introduzido na alta roda intelectual francesa graças a Sartre.
Aronson, apesar das diferenças de classe, não acredita que Camus tenha sido um oportunista, um alpinista social que se aproveitou do prestígio do amigo filósofo, “enamorado” o bastante para escrever um artigo na Vogue americana (New Writing in France, 1945), no qual classificou Camus como a nova estrela da literatura francesa. Eles se conheceram em 1943, como membros da Resistência Francesa - Camus como editor do jornal clandestino Combat e Sartre como ativista político.
Koestler viria a ser a pedra no caminho dos dois. Tanto isso é verdade que, em 1946, Camus, que já conhecia Sartre havia três anos, estava empenhado em escrever uma peça (inédita) chamada L’Impromptu des Philosophes, na qual satiriza a figura do amigo Sartre, transformando-o no personagem Monsieur Néant (Senhor Nada). O tal senhor Nada passa a peça inteira carregando um livro grosso que ninguém jamais leu (alusão irônica a O Ser e o Nada, de Sartre).
No entanto, a força de suas idéias é tamanha que ele seduz a família inteira do farmacêutico Vigne com sua doutrina filosófica, até ser recapturado pelo diretor do hospício do qual escapou. Camus jamais publicou o texto.
Aronson sugeriu à filha de Camus, Catherine, que o encenasse, garantido tratar-se de uma comédia e tanto. Ele afirma ser uma das três pessoas do mundo que leram o manuscrito.
A terceira, provavelmente, foi Sartre, que até 1952 leu todas as provas dos livros de Camus, até brigar com ele por causa de uma resenha negativa de O Homem Revoltado (L’Homme Révolté), assinada por Francis Jeanson na revista Les Temps Modernes, criada em 1945 e dirigida por Sartre como uma plataforma para defesa da filosofia existencialista e dos ideais socialistas.
Sartre não gostou do livro de Camus, um ensaio histórico sobre a revolta metafísica do homem, de Epicuro à Revolução Russa. Pediu voluntários para escrever uma resenha e Jeanson, julgado oito anos depois por seu apoio à luta dos nacionalistas argelinos, apresentou um longo texto que não ficou sem resposta do autor do livro.
Camus escreveu uma carta ao jornal - hostil como a crítica - endereçada propositalmente “ao editor”, sem nomear o amigo de Sartre, o que caracteriza sua intenção de acusar o filósofo como o orquestrador de uma campanha de difamação. Sartre escreveu uma resposta ainda mais extensa e agressiva, de 30 páginas, cuidadosamente analisada por Aronson, colocando o “homem revoltado” de Camus abaixo de zero.
Para Sartre, o que existia era o homem revolucionário, nada metafísico, que participava da história e lutava, mesmo sob o risco de cometer erros ou excessos. Camus, que pertenceu ao Partido Comunista de 1935 a 1937, sendo depois expulso, não teria o direito de escrever um livro para influenciar pessoas que lutam se não estava disposto a participar da luta, decretou Sartre. Antes ficar com as mãos sujas de sangue e a consciência limpa do que em cima do muro, como o “contra-revolucionário”.
Camus, defendia o filósofo, para seu escândalo. O amigo que lhe abriu as portas de Paris agora o deixava trancado do lado de fora. Todos os intelectuais ligados a Sartre o ridicularizavam. Magoado e sentindo-se traído, Camus chamava-os de ‘nouveaux-riches’ e ‘parvenus’ do espírito revolucionário, assumindo contraditoriamente o maniqueísmo que denunciava em Sartre.
É exatamente essa síndrome especular que Aronson analisa com bastante competência em Camus e Sartre. Reconciliando os dois amigos no fim de seu livro, ele demonstra que as duas obras estão irremediavelmente ligadas, frutos das longas conversas e do idílio que tiveram antes do divórcio intelectual.
Domingo, 30 dezembro de 2007

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